Teu coração de guitarra
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Amor, como tu és belo!
O rosto, os cabelos, os olhos,
- ah, sobretudo os olhos!
Canta, guitarra, canta!
-
A felicidade, a tristeza, a solidão,
a bondade, a pureza dos teus olhos!
Alguma vez eu saberei dizer
a pureza que desprendem
os teus olhos?
-
Tu, amor, és a grande pureza,
esse total e infinito corpo
ao mesmo tempo estrela e terra.
És carícia e ninguém.
És a criança entre as crianças.
-
Amor, quando tu ris
dir-se-ia que as tuas
gargalhadas são azuis
ninhos suspensos em futuros sóis.
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beijos sempre de amor,
-
que é a tua alma
cantando e dançando
ao redor do sol,
-
que é todo o teu perfil ainda inclinado
ao colo da tua mãe,
-
que é o medo que tens de dizer que tens medo
a teu pai,
-
que é tudo quanto tens
de meu, porque te amo.
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As estrelas despenteiam a cabeleira intacta
e passeiam, velozes, no céu, enquanto ris.
E é de oiro o teu riso, amor, ele é de oiro!
É ele que te busca e te leva e te espalha
ao largo e ao longo
do céu.
-
Longe, e perto, e alto, todavia mais alto!
De noite e de dia, mais alto!
Na vida e na morte, mais alto!
-
Mais alto do que tudo
o que existe no mundo:
tudo o que existe, amor,
só porque tu existes.
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Ris, e a cada momento
nasce uma criança alegre como tu:
alegre e bela e pura como tu.
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Por que não te fez Deus igual aos anjos?
Por que não nasceste
mais cedo,mais tarde, ou nunca?
Por que não és como os outros,
que dizem que a água
do mar não é azul,
que os lábios não são beijos,
que as estrelas não brilham,
que os pássaros não voam,
que o sangue não atinge
nas veias a altura
das ondas, dos pássaros, das estrelas, dos beijos?
-
Amor, por que nasceste
com a música?
-
Ah, por que não deslizas
e desapareces,
e te perdes no espaço,
para sempre no espaço?
-
Por que não abandonas
a tua aparência
e tomas, maravilhoso,
a límpida forma do cristal?
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Nasces, e a cada momento
em ti me dissolvo.
-
Só durmo quando dormes.
E, mesmo assim, acordo
primeiro.
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Para dar a notícia
ao Sol
de que acordaste.
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Para que seja virgem
a aurora
e mais nova e sonora
a alegria.
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Busco-te
como rio que busca
só em ti a origem,
só em ti o sentido
e o mistério
da morte, tanto como da vida.
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Amor, se eu pudesse matava-te.
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Com as mãos ainda frescas por teus beijos,
ainda humanas e claras
as mãos, os olhos ainda húmidos
de ver com os teus olhos quanto vejo.
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Com tudo, e foi tanto e tão pouco
o que me deste.
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Percorrendo contigo sucessivas cidades,
matava-te.
Em cada ser que possuísse, matava-te.
Em cada esperança que tivesse, matava-te.
De cada vez que me sorrisses, matava-te.
Só para te esquecer, amor.
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Havia de beijar um a um os teus dedos,
teus dedos que são
as cinco pontas de uma estrela,
Havia de apertá-los, devagar, lentamente,
ao redor do teu rosto
sempre meu e ausente.
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Vendo-te, querendo-te, amando-te - matar-te.
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Para que a morte fosse
a tua e minha amiga,
a nossa mãe que vem
buscar-nos finalmente.
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Para que,
todos os dias cumpridos,
corpos e almas reunidos,
viesse, enfim viesse
para nós dois o único, o possível, o sagrado repouso.
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Ou seja: a tua enorme e definitiva e contínua presença.
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In POESIA, de Raul de Carvalho