sábado, 28 de fevereiro de 2009

Crónica Semanal

Olá a todos os visitantes e amigos, Esta será a primeiras das crónicas semanais que virão directamente de África, mais especificamente de uma pequena ilha no Atlântico chamada São Tomé e Príncipe. Estou de regresso e, após uma semana, já estou reintegrada no ritmo e calor equatorial. Não foi fácil após 1 mês inteirinho passado a descansar em solo lusitano, com os miminhos familiares e sem preocupações...e muito frio!! Mas cá estou de volta, e claro, por cá, voltei a lidar com os constrangimentos diários que tanto caracterizam estas terras. Para começar, as falhas de energia diárias, às quais já me desabituara, e ainda não consigo ligar o gerador...A isso seguem-se as falhas de água, não ter internet, nem telefone e a companhia de comunicações levar séculos a pensar em resolver o problema...Muitas vezes não ter carro e ter que andar sob o calor intenso, etc, etc, etc... Mas a luta diária é um desafio e as recompensas valem a pena tanto esforço. Desta vez fico por aqui, pois receio que a net não dure muito tempo e lá se vai toda a escrita...! Beijos e saudades, Rita

Cântico Negro

« Vem por aqui» - dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: « vem por aqui» !
Eu olho-os com olhos lassos,
( Há, nos meus olhos, ironias e cansaços )
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
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A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre de minha mãe.
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Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam os meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Porque me repetis: « vem por aqui»?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, escorregar os pés sangrentos,
A ir por aí...
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Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
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Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas, e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes , os desertos...
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Ide! tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
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Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe:
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e 0 Diabo.
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Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: « vem por aqui»!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
- Sei que não vou por aí!
( José Régio - in " Poemas de Deus e do Diabo ! )

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

A gaveta dos sonhos

Crónica
Dizia-me ele com emoção mal contida na voz, o cigarro suspenso nos dedos nervosos, um semblante ingénuo de criança que não consegue guardar mais um segredo, que ia ser promovido a partir de Novembro, depois de vinte anos de sacrifícios calados, de humilhações sem coragem de revolta. Mas aí estava ela, enfim, embora já o apanhasse velho e cansado, a ocasião por que tanto ansiara! O que lhe tinha custado! Quantas visitas diárias ao gabinete do Director de Serviços! Quantas viagens à sala do Chefe de Secção para tratar de " casos bicudos" que os pobres funcionários não tinham competência para resolver! Quantas canseiras no cerimonial de tirar e pôr o casaco, de cada vez que era chamado ao gabinete do Chefe de Serviços! Quantos dias e dias, anos e anos, em que aprendera a esquecer os sonhos justos da adolescência, as leituras de bons autores, a música dos clássicos que nos momentos de nostalgia gosta de recordar como se se quisesse encontrar com uma pureza antiga - para chegar a este momento sagrado em que se sente um velho!
Enquanto o ouvia, àquela hora calma, numa Repartição vazia, rodeados de papeis e de processos em bicha, à espera, que é o cenário anquilosante da vida burocrática, não deixava de ficar espantado com aquela mudança nele, que comigo tinha discussões de morte, porque eu faltava muito ao trabalho só porque precisava de tempo para estudar; porque lhe dizia que seria útil trabalhar-se com música de fundo, a qual amenizaria certamente a aridez do trabalho puramente manual, mecanicista, funcional; que, ao contrário do que ele afirmava, nós não éramos máquinas, mas homens e mulheres, de carne e osso, com cérebro, sensibilidade e até dotados de ideias novas e válidas; que já não vivíamos no tempo do artesanato medieval, mas dos computadores que evitariam grande percentagem de papeis e de dinheiro esbanjado inutilmente; que não era utopia, era verdade, em muitos lugares do mundo e mesmo em Portugal; que a importância não estava na gravata, mas na inteligência e sinceridade das pessoas; que se podia muito bem trabalhar sem estar em pose e em silêncio...Por isso me espantava a mudança nele, o seu ar confidencial, como se eu fosse o único a compreendê-lo e à sua alegria triunfante comunicada com carinho, assim, sem barreiras de chefe para funcionário, como se fossemos camaradas e irmãos...
No fundo, eu que o conhecia e sabia que ele não era intimamente, profundamente, como se mostrava, austero, frio, defensor do homem-máquina, mas tinha, por motivos vários e deploráveis, aprendido a fechar na gaveta os sonhos humaníssimos e possíveis, que, em certos momentos de desânimo e de desesperança, abria, como se olhasse para o seu rosto verdadeiro ( e era então que falávamos sobre Beethoven, Jorge Amado, Máximo Gorki ...), respondi-lhe, ironicamente, que era a altura de ir pondo de lado uns cobres para comprar uns fatiotes mais apresentáveis, umas gravatas com mais nível, compatíveis com o seu novo posto. Ele, limpando a cinza do cigarro, sentando-se a rir da minha piada muito séria, respondeu-me com seriedade: « E olhe que tem razão. Já viu com que cara vou entrar no gabinete do senhor Presidente ( sim, porque vou passar a trabalhar de paredes meias com o senhor Presidente ) com esta farpela rasca e estas camisas de meia tigela? Não! Agora o caro Tavares tem de mudar de cenário. Havia de ser bonito!Claro que isto é mesmo assim...»
E a conversa terminou com a mesma solenidade com que tinha começado. Só que eu esperava que ele se lembrasse ainda da gaveta onde tinha os sonhos da adolescência metidos! Mas não! A gaveta estava fechada. À chave. Tinha-a fechado naquele preciso momento. Ou antes, quando soubera da notícia célebre que o deixara envaidecido!
Só eu fiquei triste. Nunca mais falaríamos de Beethoven. Nem de Jorge Amado. Nem de Gorky. Iam-me levar o Tavares para bem longe. Para lugares inacessíveis. Já não iria reconhecer o Tavares dali a uns tempos. Quando a gaveta estivesse velha. Cheia de pó. Como ele. Gaveta do que foi Tavares. De que não precisa já. De que nunca precisou afinal. Que nunca desejou profundamente. Talvez os filhos a abram um dia e fiquem espantados e tristes e desiludidos pelas coisas lá dentro, esquecidas, violadas, como flores amachucadas, ou pérolas submersas pela ferrugem da indiferença.
Eduardo Aleixo

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Quem prende a água que corre...

Quem prende a água que corre
É por si próprio enganado
O ribeirinho não morre
Vai correr por outro lado...
( António Aleixo, poeta popular, in " Este livro que vos deixo " )

domingo, 22 de fevereiro de 2009

Chamar a música

Um bom domingo. Goza o sol. E chama a música. De dia ou de noite. Com açucenas. E chá de jasmim. E poema de cetim. Que queres mais?

Eduardo Aleixo

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Boa viagem, Rita, e... traz mais conchas!

Esta última é como as anteriores, mas em estado adulto. Enquanto as pequenas são apanhadas na areia da " praia das sete ondas" , perto da cidade de S. Tomé, as adultas são apanhadas no fundo do mar pelos pescadores. Reparem que, ao crescerem, as conchas mantiveram a estrela central, embora tivessem desaparecido os interstícios periféricos.
Boa viagem, Rita. E quando regressares para a próxima, traz mais.
Eduardo Aleixo
PS: Gostaria que passasses a enviar uma crónica semanal de S. Tomé. Vá lá, não sejas preguiçosa...
.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

O meu Gwyn e o mar...

Praia de Santa Cruz, 15/2/2009

Poema

Às vezes tenho ideias, felizes,
Ideias subitamente felizes, em ideias
E nas palavras em que naturalmente se despegam...
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Depois de escrever, leio...
Porque escrevi isto?
Onde fui buscar isto?
De onde me veio isto? Isto é melhor do que eu...
Seremos nós neste mundo apenas canetas com tinta
Com que alguém escreve a valer o que nós aqui traçamos?...
( Álvaro de Campos )

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Lunário

Na vasta tela azul profunda
Surge subitamente uma forma circular
Que se passeia sempre segura
Reflectindo sua luz pela terra milenar.
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Tons mesclados de intenso branco
Traçam a vigilante da Noite.
E não há tempo que não se espante
Com seu silêncio puro e harmonioso.
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Cintilantes pontos estrelados
Seguem-lhe os passos na longa vigília
Que num melodioso, breve, compasso
Inundam pelo mundo uma terna magia.
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E seja ela uma terna canção de embalar
Ou uma dura reflexão em pranto,
É na Noite, com suas asas a voar,
Que a lua se impõe com o seu eterno encanto...
Rita Aleixo

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Vem sentar-te comigo, Lídia...

Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
( Enlacemos as mãos )
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Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.
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Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassossegos grandes.
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Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E sempre iria ter ao mar.
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Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
Se quisessemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo correr o rio e vendo-o.
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Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento -
Esse momento em que sossegadamente não cremos em nada,
Pagãos inocentes da decadência.
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Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-às de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
Nem fomos mais do que crianças.
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E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-às suave à memória lembrando-te assim - à beira rio.
Pagã triste e com flores no regaço.
( Ricardo Reis )

domingo, 15 de fevereiro de 2009

SILK ROAD

Bom domingo para todos

sábado, 14 de fevereiro de 2009

Pensamentos

"Os semelhantes atraem-se. Limita-te a ser quem és: sereno, transparente e brilhante. Quando irradiamos o que somos, quando apenas fazemos o que desejamos fazer, afastamos automaticamente quem nada tem a aprender connosco e atraimos imediatamente aqueles que,sim, têm algo a aprender e também algo a ensinar-nos."
" Ilusões " - do livro " Mensagens para sempre " - Richard Bach

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Lenda brasileira

A moita buliu. Bentinho Jararaca levou a arma à cara: o que saiu do mato foi o Veado Branco! Bentinho ficou pregado no chão.
Quis puxar o gatilho e não pôde.
- Deus me perdoe!
Mas o Cussaruim veio vindo, veio vindo, parou junto do caçador
e começou a comer devegarinho o cano da espingarda.
( Manuel Bandeira )

Não preciso me digas

Não preciso me digas como escreves:
Se a sorrir,
Se a chorar,
Se a cantar ( ou como se cantasses ),
Ou se o fazes em silêncio!...
- Porque eu vejo bem o teu sorriso!
- Ouço bem o teu chorar!...
- Escuto bem o teu cantar!
- Sei ler bem o teu silêncio!...
Não preciso me digas como escreves!
Eduardo Aleixo

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Livro de horas

- poema de Miguel Torga
Aqui, diante de mim,
Eu, pecador me confesso
De ser assim como sou.
Me confesso o bom e o mau
Que vão ao leme da nau
Nesta deriva em que vou.
Me confesso
Possesso
De virtudes teologais,
Que são três,
E dos pecados mortais,
Que são sete,
Quando a terra não repete
Que são mais.
---
Me confesso
O dono das minhas horas.
O das facadas cegas e raivosas,
E o das ternuras lúcidas e mansas.
E de ser de qualquer modo
Andanças
Do mesmo todo.
---
Me confesso de ser charco
E luar de charco, à mistura.
De ser a corda do arco
Que atira setas acima
E abaixo da minha altura.
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Me confesso de ser tudo
Que possa nascer em mim.
De ter raízes no chão
Desta minha condição.
Me confesso de Abel e de Caim.
---
Me confesso de ser Homem.
De ser um anjo caído
Do tal céu que Deus governa;
De ser um monstro saído
Do buraco mais fundo da caverna.
---
Me confesso de ser eu.
Eu, tal e qual como vim
Para dizer que sou eu
Aqui, diante de mim!
( Miguel Torga - S. Martinho de Anta, Vila Real, 1907 - 1995 )

Poema

Agora mesmo,
este encontro
tu e eu,
uma única vez através do tempo e do espaço.
("Folhas caem, um novo rebento " - de Hôgen Yamahata )

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Poema sobre a vida e a morte...

Mergulho no mar do sol que a vida tem, na espuma da alegria derramada sobre a terra, no amor festejado sobre as dunas
em frente do mar de Agosto... - De olhos regalados para o sol, estendo-me na erva verde, ao som dos insectos quentes, que o crepúsculo não tarda, a noite não tarda, as sombras não tardam!... E quando o crepúsculo vier, a noite chegar, e as sombras caírem... mergulharei todo nesta bênção, que funde os astros com as casas... De rosto salpicado pelo vento, ou arenoso no deserto da noite, bendigo então o que não sei à porta do silêncio!... - Tudo é magnífico na misteriosa estrada que liga as estrelas às paredes que adormecem!
E quando o medo me faz tremer,
como os vendavais furiosos os ramos débeis das árvores,
bendigo santamente a minha humanidade por não ter palavras disponivelmente fáceis para soletrar o que me espanta, e que secretamente procuro, mas de que fujo, como criança, inexplicavelmente envergonhada!.... - Só não percebo... o porquê deste olhar tão sereno face à morte ,
fingimento de calma, revolta envergonhada com calmas de aparência, tentando não ouvir o veredicto inatacável do fraterno que não houve em plena vida, e que a morte já reclama, ou que desdenha... - Mas eis que... debaixo do sol... , enquanto a maioria fala do comércio dos borregos e dos assuntos triviais recomendavelmente não pensados , olhos que se desviam como tábua de salvação / distracção,
para o vermelho dos aloendros ,sempre lindos, mas sem utilidade à beira do caminho, alguns pensam e meditam, e ,
de cabeças baixas, olham então, pela primeira vez, para os sapatos,
o ruído dos sapatos sobre a terra,
e sentem a consciência da inutilidade
do corpo irremediavelmente imóvel na terra quente de xisto...
-
É preciso - a gente sabe! - preparar o inevitável esquecimento
que há-de vir...
É preciso - a gente sabe! - desembaraçarmo-nos depressa daquele corpo inútil, que, mesmo inútil, se torna altamente perturbador...
Eis o que pensa a maioria , os que olham para os sapatos sobre a terra, mas falam apenas dos borregos...
-
Estranho!... como se fosse sádico ( não o sendo...), este meu eu de fora,
a congeminar, com o coração na gaveta, o poema do funeral!
Mas... sem isso...,
como escrever sobre o tempo abastardado, masturbado,dos que estão no funeral como coisa alienada...
Mas...sem isso...,
como escrever sobre o rosto vivo, destroçado, o único que sente,
que soluça,
e olha apavorado o espectáculo do morto bem amado e tão íntimo na vida... Enfim... sem isso... não seria possível registar, no poema, a maioria distraída,
do morto que somos nós em projecção, sem vida,
a quem tudo está acontecendo
no rio previsionado do universo, que corre, está correndo: -Um dia... a tua foz desaguará como um rio- o nosso rio - junto dos aloendros,
estes mesmos aloendros, para onde ninguém olha, vermelhos, mas inúteis, à beira do caminho, onde apenas se ouve o pisar litúrgico dos sapatos, e alguém sábio dirá,... por exemplo um artista bêbado, ou um vagabundo rindo loucamente nas valetas - que nunca ninguém olha os aloendros com o carinho que merecem,
e quando quiserem olhar os aloendros...
os olhos estarão fechados para sempre debaixo do sol d0 amor...
Eduardo Aleixo

domingo, 8 de fevereiro de 2009

Lai-si

Sou a Lai-si.
Lai-si é nome chinês, cantonense. Significa: presente, oferta.
A minha dona pôs-me esse nome porque me encontrou no dia dos seus anos, muito suja e com o corpo cheio de piolhos e de pulgas.
E disse: é a oferta que a Mãe Natureza me está a dar. Chamar-se-à Lai-si.
Logo bébé fugi dos meus irmãos e da minha mãe.
Sabia que o meu destino era junto dos seres humanos.
E desta família.
Sou gata selvagem.
Sou gata maluca ( é o que ouço dizerem de mim).
Só porque me atirei do quinto andar para baixo!
Que havia eu de fazer se sou caçadora, e se vi passar ladino no ar um lindo pardal?
Parti a bacia. Fui operada. Só dou despesas.
Também comi um canário. Só um! Eram dois!
Quando a minha dona chegou a casa só viu penas espalhadas pelo chão!
Foi um grande desgosto, eu compreendo. Para ela.
Sou atleta: faço, correndo como uma seta, da sala, passando pelo hall e chegando à cozinha, o tempo de 3,5 segundos.
Salto por cima do cão.
Como da comida do cão.
Ele, que rosna, e tem a doença do desvio comportamental, adora-me e
deixa-me fazer tudo.
Já tenho partido jarras e muitos bibelôs. Também já parti uma coisa a que eles chamam - ou melhor, chamavam - de "antiguidade" e que lhes custou os olhos da cara!
Mas sei que não tenho só defeitos.
Sei que eles gostam do meu quente ronronar enrolado nos seus colos.
Ouço os meus donos dizerem, com estranha vaidade, quando há visitas:
- É uma gata selvagem, já se atirou do 5ºandar, partiu a bacia,
mas é uma caçadora extraordinária. Além disso é muito meiga e tem
uns lindos olhos.
Eu finjo que não ouço.
Apetece-me dizer-lhes que tenho outras qualidades que ignoram porque não são da sua cultura.
Não sabem, por exemplo, que tenho, como eles, uma alma.
Que vim ao mundo para os ajudar.
Que nos seus colos... absorvo todas as energias negativas que trazem para casa.
E outras coisas...
Que não digo, para não me chamarem vaidosa.
Um beijo para todos.
Lai-si

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Como duas crianças empurradas pelo vento...

Deixo a cidade
e vou ao encontro das árvores,
dos pássaros,
das flores,
do sol,
das águas,
dos peixes,
da brisa,
das manhãs,
das noites,
das estrelas...
Vou contigo,
e cantamos
como dois pássaros leves...
Como duas crianças
empurradas pelo vento,
livres,
incomodamos
as estátuas!
Amantes da vida,
fingimos que não vemos a inveja
que pela vida mostram
os que têm cimento
sobre a pele,
sobre os olhos
espantados,
apavorados,
com saudades da infância
e dos sonhos sepultados!...
Eduardo Aleixo

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Sempre gostei de ti, Zé Gomes...

( José Gomes Ferreira - foto Google )
Escrito meses depois da morte da recitadora,
Manuela Porto, mas a fingir que foi no mesmo dia.
«Por favor, não me venham dizer que os mortos vivem!, que os mortos mandam!, que os mortos deixam ficar um perfume de saudade de fogo eterno nas almas!, etc, etc. Basta! Não me irritem com esses lugares-comuns de mentira com que toda a gente suja de flores murchas os tristes cabelos dos mortos.
Tenhamos a coragem de confessar que os mortos quanto mais mortos melhor, bem calcados de terra funda e esquecimento. Eu, por mim, sacudo-os com raiva do suor dos dias e das noites - feliz de respirar ainda.
Fora! Os mortos doem!
O resto - palavras de cinza enfeitadas de lágrimas de olhos ocos!
« Coitadinho! Era tão bom rapaz! Que pena! Tão novinho! »
Às vezes, no meio desses velatórios onde paira a insinceridade melancólica do remorso da alegria de continuarmos vivos, apetece-me desatar aos berros: « Calem-se! Não reduzam a morte à exiguidade do sussurro das nossa vidas! Dêem-lhe a grandeza do silêncio sem angústia!»
Mas sustenho-me sempre. Curvo a voz. ( Que bom entrar na comédia geral! ). E colaboro também, lacrimejante, a boca acesa de frio de lamúria...
( Foto cedida gentilmente por Diana Dionísio , a quem muito agradeço )
Ai da pobre Manuela Porto!, se não tivesse deixado algumas páginas tão malditamente humanas em Um Filho Mais que lhe garantem a eternidade na Selecta Terrível dos escritores de alma aberta. Se não, quem se lembraria dela depois de amanhã, ou amanhã mesmo?
Os poetas? Os poetas que Manuela Porto espalhou pelos quatro ventos de Lisboa numa dádiva de chama erguida - lenço vermelho na mão, túnica branca, ímpeto de bandeira?...
Mas os poetas ( eu, tu, ele...) não passam de poços de negrura que só a vaidade ilumina. A dor e a morte dos outros interessam-lhes apenas, ou quase sempre, como pretexto subterrâneo para se cantarem.
Nada - ouviram? -, nada conseguirá salvar do esquecimento de cova cheia a outra Manuela, a verdadeira Manuela do nosso convívio ( quero lá saber da escritora! ) que, no fim de contas, tudo valia para nós: a Manuela de todos os dias da Brasileira do Chiado, às seis da tarde, dos ensaios pacientes, na Academia dos Amadores de Música, das reuniões aos domingos em volta do chocolate em casa do João José Cochofel , dos jantares aconchegados na sua salinha diante do Enterro, de Mário Eloy; a Manuela que, como todas as mulheres superiores, possuía o segredo daquela intimidade misteriosa que, ao mesmo tempo, aproxima e afasta ( e assim quem lhe descobria os defeitos?); a Manuela a ocultar, sob a leve afectação de uma máscara exageradamente feminina, o seu coração de jacobina varonil; a Manuela, amiga e Anjo da Fama dos poetas - de todos! - , desde o Fernando Pessoa aos últimos escorraçados do neo-realismo...( Pedras de todos os cantos! Insultos de todos os céus! Ódios de todos os negrumes! E é por isso que estou com eles. A poesia é escândalo! A poesia é perigo!); a Manuela, ídolo insubstituível dessas trezentas pessoas heróicas que andam de um lado para o outro, em Lisboa, a fingir cultura, - a correr das dissonâncias da Sonata para o pescoço torcido da geral de S. Carlos; da Exposição de Artes Plásticas para o último concerto de canções de Lopes Graça; da estreia do Auto da Índia no teatrinho do Grupo Dramático Lisbonense para o recital poético na Associação Feminina para a Paz...A Manuela que, quando me encontrava, sempre me pedia em cadência de súplica: « Ó Zé Gomes: faça-me uma peça». A Manuela míope que punha os óculos para sorrir melhor. A Manuela que, na maior crise da minha vida, me escrevia com aquele tacto, tão bom!, de velar pelos amigos: « Sem querer de modo algum parecer-lhe importuna, pois sei que está magoado, atrevo-me no entanto a recordar-lhe que, depois de amanhã, sábado à noite, se encontrarão aqui em casa, alguns daqueles seus amigos mais devotados que...». A Manuela transitória, a Manuela companheira, a Manuela labareda nas estradas dos versos, com a voz do tamanho do entusiasmo do mundo em lágrimas:
( Manuel da Fonseca: autor do poema da Marcha de Almadanim )
- foto Google -
Eia!
vamos fazer qualquer coisa de louco e heróico
como era a tuna do Zé Jacinto
tocando a marcha de Almadanim! »
( In " Imitação dos Dias - José Gomes Ferreira )
Eduardo Aleixo

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Rosto sombrio...

Rosto sombrio
de pestanas impassíveis !
Que relógio está parado
no teu peito adormecido....
Eduardo Aleixo

Poema

Autor: Santôka
Sou humidade
na chuva
daquela nuvem que olhei.
Gotas caem.
( Livro: Folhas caem, um novo rebento
-- de Hôgen Yamaha )
- Assírio & Alvim

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

O velho

- Poema de Rita Aleixo
Marcada na minha memória ficou
um dia a imagem de um velho
homem, sentado numa escadaria.
-----
Seu olhar era intenso e penetrante...
E parecia deambular por
uma planície distante...
Nada mais fazia do que observar,
como se toda a experiência,
à partida, se baseasse na
sabedoria do olhar.
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E fumava seu cigarro calmamente.
Perdido algures na imensidão,
seus pensamentos corriam,
indiferentes à corda que
os amarrava ao chão...
E ele perscrutava,
absorto noutro tempo,
um mundo que era outro,
e um tempo que já não era tempo...
( Rita Aleixo, 2004 )

domingo, 1 de fevereiro de 2009

Ode à alegria ( Tal como utilizada na 9ª Sinfonia de Beethoven )

Poema de. Friedrich Von Schiller

( Marbach, Wurtenberg, 1709- 1805 )

( Meus amigos, paremos com estes sons!

Levantemos aos céus cânticos mais belos,

E plenos de alegria! )

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Alegria, a mais bonita flama dos deuses,

Filha de Eliseu,

Inspirados pelo fogo, entramos

No teu templo glorioso.

O teu fascínio aproxima

Aquilo que o mundo separa;

Todos os homens se tornam irmãos

Quando as tuas suaves asas nos conduzem.

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Quem conseguiu o bem supremo

De fazer amizade com um amigo,

Ou obteve uma doce esposa,

Esteja connosco em grande júbilo!

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Sim, quem apenas uma alma

No mundo possa chamar sua!

Mas quem não o puder fazer,

Chorando, abandone então estes lugares.

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Que todas as criaturas bebam a alegria

Nos belos seios da Natureza;

Todos os justos, e os injustos,

Igualmente provem o gosto do seu dom.

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Ela deu-nos beijos e bom vinho,

E um amigo garantido até à morte.

Igual volúpia foi concedida aos próprios vermes,

E os Querubins surgem de pé perante Deus.

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Alegres, como os corpos celestes,

Que Ele colocou nos seus cursos

Através do esplendor do firmamento;

Assim, irmãos, vós deveis seguir vosso caminho

Como o herói avança para a sua conquista.

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A vocês, milhões, eu dou meu grande abraço

Com este beijo para todo o mundo!

Irmãos, no mais alto dos céus

Deve reinar um Pai de amor.

Todos vós, milhões, vos prostrais?

Mundo, conheces o teu criador?

Procura-O então nos céus!

Ele deve habitar por sobre as estrelas.

( Tradução de Diogo Freiras do Amaral )