sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Traidor azul

Ó mar cobrindo toda a terra!
que são pra ti os continentes?
que vale uma praia, uma serra,
as flores, o campo e as gentes?
---
Do teu pedestal soberano
não podes ver a humanidade...
Ela muda em cada ano...
Tu vives toda a eternidade!
---
E és sempre o mesmo traidor...
espraiando-te ingénuo e calmo
a representar um amor
que não sentes, cantando um salmo
em que não crês, fingindo dor
que te não dói, voraz in-almo!
( Jorge de Sena, in Obras, Vol 1º, pág 20,
8/9/37 )

Confraternização em Monserraz

Os blogues " A Dita e o Balde" e o " À Beira de Água "

confraternizaram, ontem, na tranquilidade de Monserraz.

Planura em direcção a Espanha. Este Alentejo é o verdadeiro, o da planície, diferente do meu, serrano, quase algarvio.

Cal branquinha, para expulsar das casas a luz tórrida dos meses de Julho e Agosto...

As águas do Alqueva inundaram tudo e alteraram radicalmente a paisagem: colinas de antanho são hoje ilhotas...

Entramos enfim ...no silêncio das ruelas...
Ao contrário de Óbidos, aqui ...o tempo ...parece que parou!
Artesanato
Não se vê ninguém!
Igrejinha
Duas pessoas enfim, encostadas à parede...
Almoço com o Pedro Martins
Almoço genuinamente alentejano, com borrego ( muito tenrinho ), porco, batatas ( no forno e fritas ), azeitonas ( das oliveiras, do vale, que se podem ver, através da janela do restaurante) , "panito" alentejano, vinho de Reguengos( só meia garrafa, pois tenho de regressar, de carro, para Lisboa ...)...
Conversámos sobre política, literatura, amizade e blogosfera.
Reportar a conversa seria uma grande conversa. Não tenho dúvidas de que interessante, pois somos de uma geração muito rica, que se fez a si própria, ...sem ajuda de psicólogos! Que fez uma Revolução e que sabe o que é desafiar a Opressão. Que se lembra de coisas como andarmos em público com livros proibidos como " Os subterrâneos da Liberdade ", de Jorge Amado, sabendo que podíamos ser presos, mas que mesmo assim andávamos ( nem todos andávamos, esclarecia o Pedro! ). Noites, ouvindo o Zeca, e sabendo que à saída dos locais onde estávamos, tínhamos de correr mais depresa do que os " polícias de choque ". Geração em que nós e elas não tínhamos a liberdade , como hoje existe, para amar!...Falámos sobre tantas coisas!...
Da blogosfera também falámos, claro. Gostei tanto da confraternização ...que fiquei a pensar, e isto já no meu regresso, de noite, sozinho, para Lisboa, que seria muito interessante fazer mais encontros destes, com outros blogues, assim os haja que se manifestem neste sentido...
Eduardo Aleixo

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Há-de florir

Há-de florir
Esta força
De parir
Por sobre a dôr
Um rosto
Que há-de abrir
E cantar a madrugada
Difícil
Soterrada
Mas pronta
Suspeitada
A correr já no meu sangue
A dançar
No vento
Das espigas
Do sol quente...
- Ao menos que o poema o anuncie
Sinceramente
Já que o tempo passa
No meu corpo que se gasta
Mas o sonho dos países já sem guerra
Das crianças já sem fome
E dos homens já sem raiva
Amadurece
Cresce
E não me larga!...
Eduardo Aleixo

Apontamentos

Relendo poemas meus, do tempo da juventude, constato que o essencial... está lá, quer no estilo, quer na substância: a alma já se tinha manifestado, sabendo desde sempre ao que vinha para o mundo!...
Nessas folhas, pardacentas, encontro escritos, bons! Hoje, mais velho, não escreveria melhor!...
A partir dessa idade, o que haveria a fazer era só a absorção da experiência da vida e a aprendizagem dos conhecimentos teóricos, técnicos e formais, importantes, sem dúvida, mas... a sabedoria ( coisa essencial ) , já lá estava, embrionária embora, como bote no seu rio, à espera de arrais que pegasse no leme!
O que haveria a fazer!...digo eu agora!!... E acrescento: - Se a vida deixasse!...E muitas, muitas, muitas vezes, não deixa!... Eduardo Aleixo

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

MAR EM FLOR

O prometido é devido. Foto inspirada em versos de Poetaeusou e a ele dedicada. Eduardo Aleixo

De suor a cidade se alimenta...

De suor a cidade se alimenta! Homens e mulheres se gastam na cidade: castelo de pegadas sem nome, gravadas no silêncio!... Eduardo Aleixo

domingo, 26 de outubro de 2008

PARABÉNS PARABÉNS PARABÉNS

Um grande abraço de São Tomé e brinde de vinho da palma para novo ano! Beijão PAI~ Rita

No dia do meu aniversário

Que poema catedral de rosa
prepara o peito tenso, que é suspenso
em ti, que espera, fruto que amanhece,
amadurece: és a semente que
em ti cresce: escuta o novo
ser que em ti desponta!
-----
Que o parto sereno se prepara
desfolhará as palavras mendigadas,
belas, rijas, esculpidas, tu as fizeste
com teus sonhos, actos e palavras,
que antes baldamente procuravas:
eis que falam corpo novo, construído
com dor, sorriso, amor e despedida!
-----~
É a hora para nada lamentares!
Fruto colhido, doce de memória!
Alma crescida, criança renovada !
Sulcos virgens, no robusto cedro.
Colegial do mundo, canção nova
de chegada, mas já sem mágoas na partida!
Eduardo Aleixo

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

BOM FIM DE SEMANA

CLIQUE AQUI:

Convidado da semana: MIA COUTO

Bartolominha e o pelicano
" Vivia em ilha ventada, onde mais ninguém. Chamava-se Bartolominha, era minha avó favorita. O lugar dela era mais arejado que o céu, exposto ao longe e ao esquecer. Seu marido, Bastante António, sempre fora o faroleiro. Exercia aquelas luzes, noite adentro, sem que nenhuma vez tenha faltado no seu alto posto. Mesmo sem salário durante consecutivos anos , ele se manteve em fiel actividade. Esqueceram-se dele ali, os dos serviços centrais, lá onde o dinheiro brilha e a gente apodrece.

Impassível, sem se queixumar, o avô Bastante se impunha a si mesmo, infalível, nessa missão de iluminar as grandes rochas da costa. Nunca por seu lapso barco algum desfaleceu de encontro à rebentação.

De pouco lhe valeu tanta diligência: Bastante António morreu quando subia a enorme escada em caracol. Seu corpo subia mais rápido que o coração. Num segundo, essa intermitente luz de dentro deixou de lhe iluminar o peito. A notícia chegou-nos anos depois quando um ocasional barco passou por nossa cidade.

A família, de pronto, se fez ao mar. Havia que resgatar Bartolominha. A avó não podia ficar assim sem amparo naquela tão distante solidão. Acompanhei os restantes nessa missão de recuperar nossa idosa parente.Muito quem chorava era minha mãe, sua dilecta filha. Durante a viagem de barco ela se inconsolava: quem sabe a avó, entretanto, já desistira de viver e não tinha tido quem a enterrasse?

Desembarcámos com o peito enrodilhado, olhando a medo os recantos do sítio. Suspirámos alto quando Bartolominha veio às rochas, envolta em sua capulana, a mesma que eu nela sempre recordava. Quando lhe falámos em sair dali, ela se contrafez. Afinal, viéramos buscá-la? Pois que fôssemos na mesma via de regresso, que ela dali não arredava. Argumentou meu pai que ela não podia viver isolada de tudo, em lugar tão despertencido de gente. Falou meu tio que ali não chegava nem desembarcava notícia. Minha mãe acrescentou muitas lágrimas, com alma entalada na garganta.

( Aguarela da autoria de Joseph Pedro - Flórida ) - com a autorização do autor -
Bartolominha respondeu, sem palavra, apontando a campa junto ao farol. Depois, se afastou e ficou de costas olhando o mar. Era como se, em silêncio, nos convocasse. Alinhámos com ela, perfilados frente ao oceano. Que queria ela dizer, assim muda e queda? Usava o oceano como argumento? Meu tio ainda insistiu:
- Quem lhe arranja sustento?
Nos mostrou, então, o pelicano. Era um bicho que ela criara desde pequenino. A ave se afeiçoara, mais doméstica que um familiar. A pontos de ir e vir e, todos os dias, lhe trazer peixe para ela se refeiçoar.
- Tenho que ficar aqui, regar o farol. Foi o meu Bastante que me pediu para eu não deixar emagrecer este farol.
Regressámos sem a conseguir demover. Eu fiquei com o pensamento roendo-me o sono. Durante noites fui roubado ao descanso. Podia eu deixar o assunto assim? Não, eu não podia desistir.
E voltei a visitar a ilha. Demorei-me ali uns tantos dias. Juntei argumento, aliciei convite. A avó que viesse que eu lhe daria guarida e aconchego em minha casa nova. Mas nada. O mesmo sorriso desdenhoso lhe vinha aos lábios. Depois lhe sugeri que viesse comigo viajar por terras lindas.
- Sô quero viajar quando for completamente cega.
Estranhei. Nem respondi, esperando que mais se explicasse. E sim, ela continuou:
- É que eu vivi tudo tão bonito que só quero visitar lugares que já estejam dentro de mim.
Arrumei a vontade. A velha senhora tinha raízes fundas. Em desfecho de conversa, eu lhe disse que, quando fosse, no dia seguinte, deixaria um barco amarado nas árvores da praia. Para o que desse. Ela encolheu os ombros, enjeitando de vez a minha teimosia.
Nessa noite, jantámos em silêncio sob o peso de uma não dita despedida. Bartolominha proclamou o seu cansaço e anunciou que se ia retirar para seu quarto. Fizera do farol o seu aposento. Ela subiu os primeiros degraus e, antes de desaparecer no escuro, chamou o pelicano. Deitava-se com o bicho. Dormiam, inclusive, na mesma cama. Ele lhe estendia as asas e ela adormecia abraçada ao passarão. Dizia que assim seu corpo aprenderia a arte de voar.
- Uma dessas tardes vou com ele, por esses aforas.
Deitei-me olhando as estrelas como buracos no fundo preto de um tecto. Me deixei adormecer, mas logo fui despertado por um estranho pesadelo. Na realidade, eu não sonhava com nada. Nem mesmo entendia o porquê desse meu impulso ao erguer-me da esteira. Era como se eu fosse guiado por vozes, escuro adentro. Me dirigi à campa e raspei as areias com os pés. Descobri então que o buraco era raso: a sepultura não tinha fundura nenhuma. Quando me debrucei sobre os restos vi os ossos que se esfarelavam. Eram ossos de pássaro. E um muito volumoso bico.
O meu coração bateu, desordenado. Subi as escadas, tão veloz que as tonturas quase me roubaram do mundo. Não cheguei a tempo. Junto ao patamar do farol ainda toquei uma pena branca , esvoadiça. Fiquei na varanda com o vento me vestindo a alma. Num certo momento, ainda pensei vislumbrar Bartolominha revoando como se dançasse na fugaz intermitência do farol. Desde essa noite sou eu o faroleiro da ilha do avô Bastante. E aceno quando passam as grandes aves. "
( Mia Couto , in " Na Berma de nenhuma estrada " )

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

NÃO PERCA...

Não deixe de ler, amanhã, sexta-feira, o convidado da semana, um grande escritor, que vai, por certo, sensibilizar-nos, principalmente aqueles que amam o mar, os faróis e os pelicanos...
Eduardo Aleixo

Letras cor de pão

Um dia
Já nem feito de memória!
Mas de harmonia!
O Fim em que por fim
Olhamos como as crianças olham
Amamos como as crianças amam
Ferimos, mas sem culpa,
Como a boca fere os alimentos.
Será contente a nossa refeição.
Os novos livros
Têm letras
Cor de pão!...
Eduardo Aleixo

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Olha comigo nesta direcção

Olha comigo nesta direcção
Para o sol
Ou para a escuridão
Mas na mesma direcção!
Só assim preencherás a minha solidão
A nossa solidão
A solidão do Mundo!
Ao meu lado
Quero-te assim, irmã,
Quero-te assim, amante,
Nos meus braços,
Quero-te assim, ó mãe,
Ó flor,
Ó dor,
Ó sorriso,
Ó manhã,
Que é grande demais
A tempestade no Mar!
Quero que sejas a presença
De sentires em silêncio
Que sofro todos os movimentos da Terra
E que abraço todas as dores
Alegrias
Esperanças
Com pena de não ter nascido ainda o Sol
Em todos os países!
Quero que saibas que amo
humanamente o Mundo
E quero ser feliz aqui
Para onde olhamos
Nesta direcção!...
Eduardo Aleixo

terça-feira, 21 de outubro de 2008

Master Blog

Da minha amiga, Carla, do blogue http://palavrasemdesalinho.blogspot.com , recebi esta bonita prenda, que agradeço do fundo do coração, e envio-a, com muito gosto, como presente, para os seguintes amigos, a quem peço a venham aqui buscar:
- Paula ( Minhas Romãs )
- Menina Marota
-Maria ( O Cheiro da Ilha )
- Pedro Martins ( A Dita e o Balde )

- Graça Pires ( Ortografia do Olhar )

- C Valente

- Maria P. ( Casa de Maio )

- Poetaeusou

- Lúcia ( Rosmaninho da Serra )

Gostava de dar este presente a mais amigos, mas o regulamento, segundo me informaram, fixa o limite de apenas nove destinatários... Fica para a próxima.

Abraços amigos.

Eduardo Aleixo

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Fotos

OLá De África

Só para dar um olá e dizer que estou VIVA! :) Beijos e saudades O blog continua límpido como a água pura... Mais beijos... Rita

Folha branca do papel

Folha branca do papel
Atrais-me como um abismo
Desde que em mim nasceu
O mundo
Cresceu
E não o pude mais conter
Como um farol
O teu apelo é constante
No mar
Onde me perco
Naufrago
E não me canso de me procurar!...
Ouço-te, voz tão antiga
Como as areias do Mundo.
És a música autêntica
Que bates à minha porta
Perdido na imensidão da vida
Que me rouba o tempo
Me castiga o corpo
E me disputa os mil desejos.
Mas quando te ouço
Recconheço-te
Manhã sem manchas
Noite sereníssima
Romã vermelha
Calmamente repartida
Na cidade
De súbito transformada:
És o meu sonho,
A minha amada
O meu barco pequenino
Mas seguro
A minha casa
Sem paredes
Nem bolor
Na terra debaixo das estrelas
Beijada pelo vento
Rodeada pelas flores.
A tua voz é sincera,
Nem sempre serena,
Tem a força de uma fonte inesgotável,
Conheço o teu sinal,
Quando as portas da minha alma se abrem
E mergulho nas águas do silêncio
E percorro as estradas sem fim
Da vida e da morte...
És a minha única certeza
A única ilusão que nunca morre,
Dá-me forças para caminhar, partir e vencer!...
Eduardo Aleixo

domingo, 19 de outubro de 2008

Prémio Dardos

Agradecimento
1. Agradeço à Maria P., blogue, http://casademaio.blogspot.com, o ter-se lembrado de mim para a atribuição deste prémio. Sei, pelo que conheço dela, que o fez ,com total sinceridade. Por isso ,o recebo, com gosto.
2. Sobre o Prémio Dardos:
Com o Prémio Dardos se reconhecem os valores que cada blogueiro emprega ao transmitir valores culturais, éticos, literários, pessoais, etc, que, em suma, demonstram sua criatividade através do pensamento vivo que está e permanece intacto entre suas letras, entre suas palavras. Esses selos foram criados com a intenção de promover a confraternização entre os blogueiros, uma forma de demonstrar carinho e reconhecimento por um trabalho que agregue valor à web.
3. Quem recebe o "Prémio Dardos" e o aceita deve seguir algumas regras:
1. Exibir a distinta imagem. 2. Linkar o blogue pelo qual recebeu o prémio 3. Escolher quinze ( 15 ) outros blogues a que entregar o " Prémio Dardos ". Os 15 que o " À Beira de Água escolhe " são: - Poetaeusou - Rosmaninho da Serra - PALAVRAS EM DESALINHO - Ortografia do Olhar - A DOBRA DO GRITO - FERNANDA & POEMAS - EVASÓES - As minhas romãs - A Dita e o Balde - ANAMAR - O cheiro da Ilha - Alfazema azul - Mundo azul - Tulipa - Deusa Odoyá Sei que alguns nomes que nomeio já receberam o prémio. Mas se volto a incluir os seus nomes é porque sinto que seria injusto não o fazer. Só tenho pena de não incluir mais nomes que também muito prezo... Eduardo Aleixo

sábado, 18 de outubro de 2008

A FESTA

CLICA AQUI: - Maria Rita -
...o teu corpo moreno
vai abrindo caminhos
acelera o meu peito
nem acredito
no sonho que vejo
e seguimos dançando
um balanço malandro
e tudo rodando...

Hoje nasceu uma flor

Hoje nasceu uma flor
Vai sorrir a minha amada
É a flor do meu amor
Pois por ela foi regada.
Eduardo Aleixo

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Convidado da semana: Vinicius de Moraes

1. Eu sei que vou te amar
Eu sei que vou te amar
Por toda a minha vida eu vou te amar
Em cada despedida eu vou te amar
Desesperadamente eu sei que vou te amar
E cada verso meu
Será p'ra te dizer
Que eu sei que vou te amar
Por toda a minha vida
..................................
Eu sei que vou chorar
A cada ausência tua vou chorar
Mas cada volta tua há-de apagar
O que esta ausência tua me causou
Eu sei que vou sofrer
A eterna desventura de viver
À espera de viver ao lado teu
Por toda a minha vida.
( De livro de Letras
Música de António Carlos Jobim )
2. Garota de Ipanema
Olha que coisa mais linda
Mais cheia de graça
É ela menina
Que vem e que passa
Num doce balanço, a caminho do mar
..........................................
Moça do corpo dourado
Do sol de Ipanema
O seu balançado é mais que um poema
É a coisa mais linda que eu vi passar...
..........................................
Ah, porque estou tão sozinho
Ah, porque tudo é tão triste
Ah, a beleza que existe
A beleza que não é só minha
Que também passa sozinha
...........................................
Ah, se ela soubesse
Que quando ela passa
O Mundo inteirinho se enche de graça
E fica mais lindo
Por causa do amor
( De Livro de Letras
Música de António Carlos Jobim )
3. A felicidade
Tristeza não tem fim
Felicidade, sim...
...................................
A felicidade é como a pluma
Que o vento vai levando pelo ar
Voa tão leve
Mas tem a vida breve
Precisa que haja vento sem parar
............................................
A felicidade do pobre parece
A grande ilusão do Carnaval
A gente trabalha o ano inteiro
Por um momento de sonho
P'ra fazer a fantasia
De rei ou de pirata ou jardineira
E tudo se acabar na quarta-feira
.........................................
Tristeza não tem fim
Felicidade, sim...
............................................
A felicidade é como a gota
De orvalho numa pétala de flor
Brilha tranquila
Depois de leve oscila
E cai como uma lágrima de amor
................................................
A minha felicidade está sonhando
Nos olhos da minha namorada
É como esta noite
Passando, passando
Em busca da madrugada
Falem baixo, por favor...
P'ra que ela acorde alegre como o dia
Oferecendo beijos de amor.
........................................
Tristeza não tem fim
Felicidade, sim...
( Idem )
- In o livro, O Poeta não tem fim.
O Melhor de
Vinicius de Moraes

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Nasce então como num parto um novo rosto...

As palavras estilhaçam como pedras
a caliça das águas secularmente calmas do lago
que se tem por segurança,
limos,
que entaipam os peixes,
belos dançam,
saudosos do voo das aves,
mas que nunca viram!
Nasce então, como num parto,
um novo rosto,
que parte,
como se fosse um barco,
ao encontro do seu rosto!...
Eduardo Aleixo

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

As casas da Câmara. Ou... das Câmaras?...

( In " Diário de Notícias ", 12/10/12008 )
Podia ter piada. Mas não tem. Será cada vez menos notícia ( suspeito ).Podia mobilizar as pessoas, mas tal não acontecerá! Podia levar os líderes dos partidos políticos e os de opinião a dizerem que se trata de uma situação de injustiça para milhares de portugueses que pediram dinheiro à banca para comprarem a sua habitação e que, ainda hoje, passados tantos anos, a estão a pagar, assim como o I.M.I. ( imposto municipal sobre imóveis ), a taxa de esgotos e as despesas de condomínio, só porque não foram mendigar dinheiro a nenhum presidente da Câmara, mesmo que o conhecessem, ou não. Podia levar os comentadores políticos a dizerem uma verdade simples: que uns, poucos, entre eles dirigentes, autarcas e jornalistas, vivem à conta do Orçamento, e a esmagadora maioria não! Podia, mas não pode. E não pode, porque este enxovalho, este ataque à equidade, esta injustiça e esta imoralidade, como tantas outras que existem, surpreendentemente, na sociedade portuguesa, incluem gente poderosa, comprometem os principais partidos políticos e organizações influentes da sociedade e, quando assim é, provado está , pouco poder resta ao cidadão comum, a não ser o de votar, de quatro em quatro anos, até que, obtida a consciência de que esse poder de nada vale , fica apenas com o desencanto e a insensibilidade, infelizmente crescentes, face à fútil retórica e indiferença de muitos políticos...
Há coisas que se estranham, que custam a engolir, mas que são verdadeiras!
Eduardo Aleixo

domingo, 12 de outubro de 2008

Germinaste em mim como um poema...

Germinaste em mim como um poema.
Onde quer que eu estivesse estavas tu.
Sem o saberes,
o teu rosto de silêncio
sentava-se ao meu lado
no deserto preenchido dos dias e das noites.
Quando me perdia de ti,
era esquecido de mim.
Quando me encontrava,
procurava-te.
E quando te procurava,
sabia que era impossível fugir-te,
mesmo que o quisesse.
Quem eras tu?
Sei lá!.
Tinhas tantos nomes!
Eras o mar,
em primeiro lugar.
Depois, o sol, a charneca, o vento,
os rios, as dunas, as estrelas, as árvores,
as crianças, as flores, a música, os frutos, o trigo loiro...
Eras eu,
quando sonhava
só a ti dizer
os mais íntimos segredos...
Sem o saberes,
acompanhaste sempre as minhas travessuras.
Se soubesses por que caminhos
por que becos
ziguezaguearam estonteantes os meus passos!
Sem o saberes
tinha descoberto
que nos descobríamos,
que nos procurávamos,
que sabíamos sempre um d0 outro,
que nos encontrávamos!
Sem o saberes
tinhas-me apontado a fonte
de onde não podia mais retirar
os meus lábios!
E, no entanto,
não havia bebido ainda a água desse encontro sem ter culpa.
Assim crescemos
lado a lado
no deserto do mundo
no silêncio das areias
quando não tínhamos ainda visto o mar!
Eduardo Aleixo

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Convidado da semana: Walt Whitman

Sei que tenho o melhor do tempo e do espaço, e nunca fui medido e
nunca serei medido.
A minha viagem é eterna, ( venham todos ouvir-me ),
Os meus sinais são uma gabardina, bons sapatos e um cajado que cortei
no bosque,
Nenhum dos meus amigos se instala na minha cadeira,
Não tenho cadeira, nem igreja, nem filosofia,
Não conduzo ninguém à mesa de jantar, à biblioteca, à Bolsa,
Só te conduzo a ti, homem ou mulher, a um outeiro,
A minha mão esquerda aperta-te a cintura,
A minha mão direita assinala a paisagem dos continentes e o passeio público,
Nem eu nem ninguém pode percorrer por ti este caminho,
Deves percorrê-lo por ti mesmo.
Não fica longe, está ao teu alcance,
Talvez tenhas andado por ele desde que nasceste e não o saibas,
Talvez fiques em toda a parte, na água e na terra.
Carrega os teus farrapos, meu filho, e eu carregarei os meus, apressemo-nos,
Chegaremos a maravilhosas cidades, chegaremos às nações livres.
Se estás cansado, deixa-me levar os fardos, e põe a tua mão na minha anca,
E no devido tempo hás-de retribuir-me,
Pois já que partimos nunca poderemos descansar.
Hoje, antes do alvorecer, subi uma colina e olhei os céus e as constelações,
E perguntei ao meu espírito: Quando abraçarmos essas orbes, quando tivermos o prazer e o saber de quanto nelas há, sentir-nos-emos realizados e satisfeitos?
E o meu espírito respondeu: Não, se alcançarmos esses cumes é só de passagem, é só para continuar mais além.
Tu também interrogas e eu escuto,
Respondo que não posso responder, tens de descobrir por ti.
Senta-te um instante, meu filho.
Aqui tens bolachas para comer e leite para beber.
Mas logo que adormeças com a tua roupa fresca, dar-te-ei um beijo de
despedida e abrir-te-ei a porta para que partas.
Tempo que baste já sonhaste os teus sonhos maus,
Agora afasto as ramelas dos teus olhos,
Deves habituar-te ao esplendor da luz e de cada momento da tua vida.
Muito tempo rondaste timidamente a praia agarrado a uma tábua,
Agora quero que sejas um nadador intrépido,
Que saltes no meio do mar, que te ergas outra vez, que me faças sinal,
grites e rias enquanto a água cai dos teus cabelos.
( Walt Whitman - in " Folhas de Erva " )

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Foi muita a dor...

Palavra mágoa.
Palavra dor.
Com sede de água...
Irmão!
É para todos a palavra água,
a palavra amor,
a palavra pão...
Foi muita a dor.
E grande a solidão...
( Lx, Maio de 1980 )

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

LISBOAGATE

" Vital Moreira é mais uma das figuras que condena a indevida atribuição de casas da Câmara Municipal de Lisboa ( CML). No blogue " Causa Nossa", o constitucionalista diz não encontrar " moralidade política nem nenhum fundamento " para que se arrende casas a particulares fora dos programas de habitação social. Vital Moreira considera as atribuições de casas uma " situação inaceitável", uma vez que se encontra fora das competências do município. Vital Moreira diz ainda que a CML " deve, pura e simplesmente, acabar com essa situação, mesmo em relação aos casos existentes."
( Diário de Notícias, 5/10/2008 )

Utopia

Tempo de champanhe universal!...
O mundo já sem guerras
já sem grades
já sem medos
já sem garras!
As mãos já sem memória
das dádivas negadas,
Os olhos já sem muros,
nem defesas couraçadas!...
As crianças são barquinhos
sem velhice no olhar,
cantam a vida merecida,
têm comida, educação,
amor e liberdade,
brincam com as flores,
correm e dançam festivamente
e mergulham como peixes no mar...
Eduardo Aleixo

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Bom dia a todos

Poema

Aquela senhora tem um piano
que é agradável mas não é o correr dos rios
nem o murmúrio que as árvores fazem...
Para que é preciso ter um piano?
O melhor é ter ouvidos
e amar a Natureza.
( Alberto Caeiro )
- in " O Guardador de rebanhos" -

Estória mais simples do que esta não existe!

Acontece que um dia bateste à minha porta!
Trazias o coração tão só e tão triste!
Logo te reconheci.
Entraste.
Nada te perguntei.
Nada me perguntaste.
Nada me pediste.
Muito me deste.
Muito te dei.
E foi assim
até ao dia
em que partiste!
Estória mais simples
do que esta...não existe!...
Eduardo Aleixo

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

YouTube - José Afonso - Os Vampiros (ao vivo no Coliseu)

YouTube - José Afonso - Os Vampiros (ao vivo no Coliseu) Às vezes, lembro-me do Zeca. A sua voz é sempre bela. Eduardo Aleixo

Lista de inquilinos da autarquia ainda é segredo...

" « É o sector menos conhecido da Câmara de Lisboa » , diz Fernando Negrão - o vereador eleito pelo PSD - sobre o funcionamento da Divisão de Património, que gere todo o parque habitacional disperso........da CML. « Há uma enorme dificuldade em obter informação interna, num organismo que funciona quase na clandestinidade», afirma.
A lista de inquilinos camarários, assim como o levantamento dos funcionários autárquicos que usufruem de casas da Câmara foi pedido há um ano pela vereação social-democrata. Vários outros requerimentos sobre a situação dos arrendatários , sobre o património habitacional ou sobre o parque imobiliário disperso da autarquia, foram apresentados pelos sociais-democratas. Todos obtiveram " respostas insatisfatórias", explica Fernando Negrão ao Expresso. Muitas "são mesmo criptadas, difíceis de compreender", o que mostra que " não há clareza".
Uma listagem sobre os arrendatários municipais foi entregue no passado mês de Março ao Gabinete da Oposição do PSD. Antes mesmo de rebentar a polémica do " Lisboagate" sobre alegados favorecimentos na cedência de casas camarárias, os sociais-democratas obtiveram uma resposta. O documento - a que o Expresso teve acesso - integra 671 casas, dispersas por toda a cidade. Com rendas entre o 1 euro, por uma casa no Beco dos Loios e os 595,17 euros por um T2 na avenida Infante Dom Henrique, a informação é vasta , mas pouco esclarecedora. Em nenhum momento se esclarece quantos dos arrendatários são ou foram funcionários da autarquia - como o PSD solicitara. Curiosamente, também, nenhum dos nomes que surgiram nas últimas semanas alimentando o escândalo ou sob investigação policial constam da listagem. Ana Sara Brito, a vereadora da Habitação que morou durante 20 anos numa casa camarária, Rosa Araújo, dirigente da Segurança Social, José Bastos, director do Departamento de Apoio aos Órgãos Municipais, Isabel Soares, chefe de gabinete do vice-presidente da CML, ou mesmo o jornalista Baptista-Bastos, não constam destes ficheiros. "
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( Expresso do dia 4/10/2008. Artigo, da autoria de Rosa Pedroso Lima )

Os Magalhães

sábado, 4 de outubro de 2008

A SANTA CÂMARA

Por concordar com o artigo e considerar que ele toca no cerne do problema - para mim preocupante e sintomático do sistema democrático (!) em que vivemos - a atribuição de casas pela Câmara de Lisboa - o qual tem sido divulgado recentemente na imprensa, mas pouco analisado na proporção que a sua importância, a meu ver, merece, aqui o transcrevo, da autoria da jornalista, Fernanda Câncio, publicado no Diário de Notícias, em 3/10/2008:
" Conheço, superficialmente, Baptista Bastos e Ana Sara Brito. Tenho simpatia pelos dois. Por isso mesmo, essa coisa das casas da Câmara de Lisboa ainda me faz mais impressão. Leio as justificações de um e de outro e fico consternada. Diz Baptista Bastos, na sua coluna de opinião neste mesmo jornal - e neste mesmo espaço - , que em 1997, estando desempregado e com filhos a cargo, vivia numa casa arrendada em Alfama há 32 anos na qual chovia e havia rachas nas paredes e recebeu, na sequência de uma vistoria camarária e de uma análise aos seus proventos, um fogo da autarquia, cuja renda se recusa a revelar, mas garante ter-se actualizado desde então " ao ritmo da inflação". Diz o Correio da Manhã que B.B vive num prédio na Estrada da Luz e paga 215 euros de renda. Isso implicará que a renda terá começado por ser de pouco mais de 150 euros. Em contrapartida, uma casa em Alfama arrendada há 32 anos e nas condições descritas teria em 1997 uma renda consideravelmente mais baixa. Logo, se a história é assim e os valores estes, B.B foi pagar mais na casa da Câmara - embora muito menos do que pagaria por uma casa a preços de mercado. Mudou, pois, para uma casa melhor com uma renda superior - coisa normalíssima , não fosse dar-se o caso de a casa ser camarária e de ninguém conseguir explicar quais os critérios que presidiam, em 1997, à atribuição de casas da Câmara. Explico melhor: é garantido que outra pessoa qualquer a viver num apartamento velho com rachas onde chovesse e com rendimento igual ao auferido em 1997 por B.B, conseguisse uma casa da Câmara igual à dele?
Naturalmente, não é a Baptista Bastos que cabe responder à pergunta acima. Ele limitou-se a solicitar e a aceitar. Não terá querido saber dos critérios nem da igualdade ou até da justiça. Achou que tinha direito e quem de direito ( ou seja, quem detinha a posse das casas e o poder de as atribuir ) deu-lhe razão. O caso de Ana Sara Brito é mais complicado. Porque Ana Sara Brito é neste momento vereadora, e porque era vereadora aquando da recepção da casa que o presidente Kruz Abecassis lhe arrendou em nome da autarquia, há 21 anos. Ana Sara Brito tinha obrigação de se interessar pelos critérios, pela igualdade e pela justiça. Porque tinha um cargo camarário e porque esse cargo era o de acção social. Sobre os critérios, porém, diz-nos hoje que " eram os da época". E da renda diz que era "legal". E que está " de consciência tranquila". Diz nada, portanto.
Este triste assunto não deve transformar-se num auto de fé de B.B. e de Ana Sara Brito. Por todas as razões , sobretudo a de que o assunto é muito maior do que eles. O que está em causa , e não será de mais repeti-lo, é o que de pior existe em qualquer administração pública - a opacidade, o favorecimento discricionário, a assunção dos bens públicos como propriedade de "quem está " e o seu tráfico entre escolhidos. Se em vez da " atribuição" de casas estivessemos a falar da de envelopes de papel pardo com notas lá dentro, estaria já tudo aos gritos, a começar por Sá Fernandes e Helena Roseta, esses indomáveis campeões anti negociatas. Mas, como na lenda da Rainha Santa, o dinheiro está transformado em casas. Pode-se fazer de conta que não se passou nada."
( In Diário de Notícias, de 3/10/2008, da autoria da jornalista, Fernanda Câncio )

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Berlengas (3)

- Por Raul Brandão
25/08/1909
( Em " Os Pescadores )
- continuação...
Mesmo junto à ilhota armam os pescadores a valenciana, porque este é um dos pontos mais piscosos da costa. Ainda hoje a sardinha, que salta ao lume de água, acode em bandos compactos. Pesca-se o pargo mais saboroso de Portugal e a dourada com riscos na cabeça, de oiro cor de fogo da louça Talavera, o atum, a muge, o godilhão e a lagosta, que se apanha em covos. Fisgam-se nas misteriosas cavernas polvos velhíssimos como os de Vítor Hugo, que vivem em buracos onde só chega uma luz amortecida e verde, atenuada pelas algas desconformes. Aqui têm também as aves marítimas o seu ninho predilecto - os airós, as galhetas e as gaivotas, que passam num grasnido quase humano e que criam os filhos nos paredões a pique, onde só se chega arriscando a vida.Neste fim de Agosto passam para o sul bandos de patos formados em ângulo agudo, com o guia no vértice; pombos cinzentos que voltam de terra com os papos cheios de sementes; maçaricos-reias que piam ao pousar no areal, levantando voo para piar mais longe; e o cisne negro que nos dias de temporal dança ao desafio na crista das vagas, furando-as como bom mergulhador.

Se houvesse justiça no planeta, eu já tinha sido nomeado governador deste castelo, onde vivem três veteranos que de velhos criaram musgo - ou pelo menos faroleiro. Como sou um contemplativo, o lugar convinha-me perfeitamente. Os homens devem ser felizes diante deste espectáculo sempre igual e sempre renovado. De Inverno nenhum barco atraca às Berlengas. Só e Deus no mais belo sítio da costa portuguesa!...Atrevo-me a falar a um velho musaranho, de focinho arreliador, que está metido no farol, de costas para o mar, fingindo que me não vê, a esfregar e a polir os metais reluzentes.

- Hen?...

- Hum!...

Rosna e não diz palavra que se entenda.

- Olá!

Olha-me com desprezo e continua a polir os metais já polidos, como se eu não existisse. Mas não desanimo facilmente e teimo:

- Que beleza, han?!...

Toquei-o. O homem sacode os ombros, levanta-se, atira o pano fora, encara-me de frente, com os bigodes assanhados entre as rugas e um olho azul de faiança cheio de cólera:

- Que beleza, o quê? Que beleza?...Isto?! - E ri-se. - O vento e o mar! Sempre o vento e o mar! O vento, que no Inverno não me deixa chegar à porta, e o mar todo o dia, toda a noite a bramir! O mar desesperado, o vento desesperado...Eu não sou um faroleiro - sou um náufrago. Que beleza, hem?...Nem posso dormir! Toda a noite o vento uiva, toda a noite o mar ecoa, ameaçando submergir esta ilha do Diabo!

Julguei-me autorizado a interrompê-lo:

- Mas no Verão é esplêndido...

-Nem olho. Só me resta uma esperança - fugir. Se não me mudam, endoideço. O amigo sabe quantos endoideceram já? Três!...

E atirando os braços para o ar:

- Uma calamidade! Aqui não se sabe nada, aqui não chega nada. Nunca! Nunca! Nem a pneumónica aqui chegou. E não posso ter uma couve, não posso ter uma abóbora...Os coelhos devoram tudo. É uma praga!

-Dê-lhes tiros.

- Tiros?! - E ri-se com dois dentes de desprezo. - Quando quero um coelho, ato um anzol a um pau, meto o pau na lura e tiro o coelho para fora; quando quero um peixe, ato uni anzol a uma linha e deito a linha à água...Mas o que eu quero é fugir! Fugir! Fugir para muito longe, para onde não oiça o mar, para onde não veja o mar!

Rosnou...Percebi que repetia com escárnio: - Que beleza, han!... - E voltando-se, outra vez com o pano na mão, continuou a esfregar e a polir com desespero os metais - de costas viradas para o mar...

Olho pela derradeira vez. É para sempre que quero fixar a imagem, a última, a definitiva, a essencial, do morro vermelho a emergir do mar imóvel, cheio de pedras espumantes - a da Velha, a da Estela, a Pedra Redonda, a Pedra de Todo- o -Peixe, o Guilhão...Duas manchas bastam-me para toda a vida, uma etérea, a outra sangrenta, com um castelo queimado e requeimado como um velho cachimbo ao pé do vidro grosso da água. Duas manchas e um pormenor: o fio de areia onde ficou impresso um pé delicado de mulher...

Regresso num fim de tarde toda de oiro, num mar todo verde. São outras três horas a remo. Deito-me no fundo enxuto do barco e absorvo-me na luz que se transforma. É roxa agora. Desvanece-se mais. Estou encerrado numa grande jóia translúcida e viva - viva - que pouco e pouco muda de cor. Violeta, toda violeta, e vai desmaiando como quem morre devagarinho com a saudade...

25/08/1919

Raul Brandão

( Em " Os Pescadores " )