quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Feliz ano de 2009

( Sinfonia do Novo Mundo - Dvorak )

E obrigado pela vossa participação no

À Beira de Água. Eduardo Aleixo

segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Charles Chaplin ( com atraso, a minha homenagem )

Quando sorria
não sorria
feria...
--
Quando dançava
o seu corpo
estrebuchava...
--
Quando falava
sonhava
não parava
de sonhar...
--
O sorriso de Charlot
era uma faca
era uma farsa
era sem definição!
Talvez rosa de piedade
como uma criança
sem ódio
a dizer NÃO...
--
Quando dançava Charlot
o corpo dele
crescia
crescia
renascia
não cabia
no smoking
da convenção
e fugia
fugia
para o país da ganga simples
onde tinha o coração...
( Escrevi este poema em 25/12/1977, com o título " Morreu Charlot ". Tal como aconteceu com a Maria, do blogue, " O Cheiro da Ilha ", não resisti a lembrar esta gigantesca figura da arte e do cinema a despeito de já ter postado este poema. Ela fez bem em lembrá-lo na data exacta: 25 de Dezembro. Eu faço-o agora, com um pouco de atraso, é certo, mas com muito amor. )
Eduardo Aleixo

domingo, 28 de dezembro de 2008

POEMAS

1.
Humildade ( 1954 )
Tanto que fazer!
livros que não se lêem, cartas que não se escrevem,
línguas que não se aprendem,
amor que não se dá,
tudo quanto se esquece.
-
Amigos entre deuses,
crianças chorando na tempestade,
cidadãos assinando papéis, papéis, papéis...
até o fim do mundo assinando papéis.
-
E os pássaros detrás de grades de chuva,
e os mortos em redoma de cânfora.
-
( E uma canção tão bela! )
-
Tanto que fazer!
E fizemos apenas isto.
E nunca soubemos quem éramos
nem para quê.
2.
Exercício ( 1955 )
Ciência, amor, sabedoria,
tudo jaz muito longe, sempre
- imensamente fora do nosso alcance.
-
Desmancha-se o átomo,
domina-se a lágrima,
já se podem vencer abismos
- cai-se, porém, logo de bruços e de olhos fechados,
e é-se um pequeno segredo
sobre um grande segredo.
-
Tristes ainda seremos por muito tempo,
embora de uma nobre tristeza,
nós, os que o sol e a lua
todos os dias encontram
no espelho do silêncio reflectidos,
neste longo exercício de alma.
( Cecília Meireles, in " Antologia Poética " )

sábado, 27 de dezembro de 2008

Boas Festas e Feliz Entrada em 2009!

Olá a todos os que lêem o nosso blog, Apesar de estar mais ausente, tento sempre passar por cá e vou estando atenta ao que se passa.. Nem sempre tenho oportunidade para deixar algumas palavras ou fotos pois a internet é muito lenta por estes lados e ás vezes não tenho tempo! No entanto, gostava de vos deixar com algumas palavras sobre a minha experiência de Natal em São Tomé, num país onde falta quase tudo. Ora bem, para começar, praticamente não se sente que estamos no designado periodo natalício, pois não está frio, não se ouvem músicas de Natal, não há consumismo desenfreado pelas prendas, enfim, nada que nos faça lembrar a época...Surpreendentemente, o dia de Natal foi muito mais sentido para mim cá do que nos útimos anos em Portugal. As pessoas estavam bastante unidas e os poucos presentes que são comprados com algum esforço são sempre bens de necessidade. Na nossa equipa de trabalho fizemos uma pequena festa de Natal com troca de prendas de amigos secretos e nunca tinha visto tamanha satisfação ao ver pessoas a receberem jogos de copos ou camisas com grande alegria, pois aqui são coisas "chiques" e que nem todos têm acesso. Sentiu-se a partilha e comunhão entre as pessoas, apesar de aqui o Natal não assumir a importância grandiosa que tem no Ocidente. Provavelmente porque ninguém tem dinheiro para comprar árvores de Natal e prendas. Existem outras necessidades, mas continua a haver uma pequena reunião de família. Votos de Boas entradas em 2009! Por aqui, toda a gente vai para a praia festejar! :) Beijos, Rita

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

FAMÍLIA

Temos uma família desfeita na terra:
( Ó ternos corações, ó fechados olhos onde costumávamos
habitar! )
mas dessa não temos notícia:
e o nosso amor é uma rosa sobre muros de sombra.
--
Temos uma família muito distante,
em aposentos que não vemos, em países que jamais iremos
visitar!
Dessa temos notícias, eventualmente:
mas o nosso amor é uma rosa que murcha incomunicável.
--
Temos uma família próxima, algumas vezes,
que se move, e nos fala, e nos vê,
mas entre nós pode não haver notícias:
e o nosso amor é um muro sem rosas.
--
Temos muitas famílias, havidas e sonhadas.
São as nuvens do céu que levamos sobre a alma,
as espumas do mar que vamos pisando.
Nós, porém, continuamos viajantes solitários:
e a rosa que levamos no coração, comovida,
também se desfolha.
--
( Ou pode ser que, afinal, a rosa seja unânime
e eterna
em sobre-humana família. )
( Cecília Meireles - 1961 - in "Antologia Poética" )

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Inverno...

...recebamo-lo, com carinho.
Sem o inverno, a primavera não teria sabor.
Nem na Natureza,nem dentro de nós.
E nós somos a Natureza, que é perfeita...
Eduardo Aleixo

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

É.....
Um JULGAMENTO!
Ninguém acertou, para a próxima vem uma mais fácil!
Bjs

Resposta à Adivinha

domingo, 21 de dezembro de 2008

O cheiro da Terra e o brilho das Estrelas

A minha paixão pelas estrelas vem da meninice, das noites calmas de verão no Alentejo, sentado nos poiais da porta de casa dos meus avós, ouvindo o meu avô falar, o meu avô que tinha sido contrabandista na juventude - e que, curiosamente, casou com a minha avó, que era filha de um guarda-fiscal ! - , noites brancas, feitas de silêncio, de vultos oscilantes ao sabor das covas das ruas poeirentas, do uivar lancinante dos cães vadios, do piar azarento das aves nocturnas, noites nos povoados sem luz eléctrica, era a lua e as estrelas que iluminavam os caminhos, por isso conheço as estrelas, as constelações, os planetas, o sortilégio das noites em que ficava à espera de ver não só os pirilampos, mas também as estrelas cadentes riscando profusamente a imensidade do azul profundo do céu, enquanto o meu avô falava sobre a vida terrivelmente incerta da passagem da fronteira, da "raia" de Espanha, como se dizia, e como se deve dizer, com as " cargas " às costas, fugindo dos tiros dos " carabineros ", defrontando os frios, as chuvas e as incertezas das noites:

- Uma sorte danada , aquela noite, dizia ele com ar saudosamente enigmático...

Foi há muitos anos!...

Mas nunca mais esqueci as estrelas , como nunca esqueci a fome do meu povo sofrido , ambas as coisas me ficaram gravadas, fazem parte de mim, intimamente ligadas, em equilíbrio, céu e terra, voo e prisão, leveza e densidade, duas faces de uma moeda de Amor, complexa, sublime, misteriosa, tudo isso foi o princípio do que aprendi, e depois a vida me foi ensinando, ouvindo as histórias do meu avô sobre as tragédias do mundo, enquanto olhava embevecido para a beleza esplendorosa do universo... Eduardo Aleixo

sábado, 20 de dezembro de 2008

Céus transbordantes de estrelas...

Céus transbordantes de estrelas esbanjadas
flamejam sobre a tua aflição. Em vez das almofadas,
chora lá para o alto. Aqui, junto ao teu rosto
choroso e agónico, expansivo começa
já o impetuoso espaço cósmico. Quem interrompe,
quando pra lá te impeles,
essa torrente? Ninguém. A não ser
que tu de repente lutes contra o sentido enorme
desses astros ao teu encontro. Respira!
Respira a escuridão da Terra e de novo
ergue os olhos! De novo. Leve e sem rosto
encosta-se a ti lá de cima a fundura. A face
dissolvida e contida na noite dá espaço à tua.
( Rainer Maria Rilke - Paris, Abril de 1913 -
- Dos Poemas à Noite ( Gedichte an die Nacht ) -

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

POEMA

O dia adormece manso, -
vagueio longe dos homens ...
Despertos, em vasto círculo ,
eu - e uma estrela pálida.
-
Seu olhar de luz entretecido
repousa claro e cintilante em mim;
parece estar, lá no céu,
tão só como eu aqui...
Rainer Maria Rilke
( Primeiros poemas - Advento 1898 )

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Convidado da semana: José Régio

Cântico Negro
« Vem por aqui» - dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: « vem por aqui »!
Eu olho-os com olhos lassos,
( Há, nos meus olhos, ironias e cansaços )
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
---
A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre de minha mãe.
---
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Porque me repetis: « vem por aqui?»
Prefiro escorreger nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
---
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios passos na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
---
Como, pois, sereis vós
Que me dareis implsos, ferramentas, e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
---
Ide! tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
---
Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe,
Mas eu, que nunca pricipio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
---
Ah!, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: « vem por aqui»!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
- Sei que não vou por aí!
( José Régio, in " Poemas de Deus e do Diabo " )

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

POEMA DE NATAL

Simples como os homens do campo. Bonito
como os chalés da cidade. Carregado com sonhos de amor, de justiça
e de beleza, o poema cresce universal. O poema dança
sem cobrar bilhetes em cima de todos os continentes.
O poema é o sol que brilha em todos os corações,
por que clamam todos os invernos quando a primavera
se banqueteia em noivado de sorrisos no regaço dos goiveiros.
O poema rosto triste das crianças nas cinturas das cidades,
onde o Natal chega... mas não encontra empregos para a compra
de casas, de comida, de roupa e de brinquedos!...
Eduardo Aleixo

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

É quase inverno

Parou de chover. Através das vidraças do telheiro vejo três pássaros pousados nos ramos do damasqueiro; não tardarão a fugir, pois o tempo não está de feição. Não vejo só o damasqueiro despido de folhas, com os dedos finos apontados para o céu. Também a figueira - de figos pingos de mel- estende para o alto os braços grossos, lisos e retorcidos. Nu, também, o pessegueiro, que se estreou este ano, para surpresa nossa , a dar pêssegos, com fartura, sendo tão jovem! E as ameixeiras, que ano tão difícil tiveram, sempre adoentadas! E a nogueira, e a cerejeira, que só por serem tão novas, não deram ainda frutos. Pouso o olhar nas gotinhas de chuva poisadas nos vidros das janelas. O meu cão esgaravata com as patas a terra molhada e vai, claro está, sujar a casa daqui a bocado. « Seu burro, diz-lhe a dona », mas ele faz ouvidos de mercador. O dia está escuro.
É quase Inverno. Com poucas folhas, de um amarelo agonizante no corpo, está o marmeleiro, a quem dou os parabéns pelos seis grandes marmelos com que vaidosamente e pela primeira vez nos mimoseou. Também com poucas folhinhas, e muito débeis, está a macieira bravo de esmolfe, que trouxe da Beira, e que mostra muitas dificuldades em adaptar-se ao clima do Oeste. A tangerineira, carregada de filhinhos vermelhuscos. O limoeiro, verde pálido, com doença, há que cuidar dele...Parou de chover. O Gwyn ladra. Os pássaros desapareceram. Ouve-se o mar ao longe. Chegámos de Lisboa, há pouco. A casa está fria. Estas casas do campo, rústicas, bonitas, isoladas, são frias. E, coladas à natureza, são como a natureza. Por isso, a primeira coisa que fazemos, quando aqui chegamos, vindos de Lisboa, é pôr cepos na lareira. Quem teve uma infância , como eu tive, na província, e se lembra das noites passadas com os pais e avós junto da lareira, vê sempre na lareira algo de mágico. Se me derem a escolher entre uma lareira das que falo e uma moderna a que chamam recuperadores de calor, como a que tenho, na minha casa de Lisboa, prefiro a lareira tradicional. A lareira é uma fonte indescritível de magia, de silêncio, de ligação suave e doce ao universo. .Voltando ao que vejo através das vidraças do telheiro, vejo as couves, altas, as nespereiras que voltaram a entristecer-me este ano porque se recusam a dar flores, e a oliveirinha frágil, que já me suplicou para atar o seu corpinho cansado a um suporte, para que possa resistir à força do vento norte. É outono, sim. Quase no seu fim. As árvores sabem-no melhor do que eu. São sábias. Estão ligadas à energia calma e segura da terra. Mas também à energia dinâmica do céu. Por isso estão preparadas para o inverno. Eu amo-as .
Eduardo Aleixo

sábado, 13 de dezembro de 2008

Deslumbramento

A vida é sonho, amor, exaltação.
Flama a irromper de eterna escuridão.
É lume a flor e a sombra amanhecente.
A terra é carne, a luz é sangue ardente.
Gira líquida chama em cada veia
E que alegria as nuvens incendeia!
Contemplai, sob os raios matinais,
O delírio e a vertigem dos cristais,
Entre cintilações, gritando e rindo,
Abrasados de luz, tremeluzindo!
No alvor da aurora, as aves resplandecem,
No coração do orvalho, sóis florescem,
No coração dos homens solitários,
Há Cristos a subir ermos calvários.
Cantam as fontes, doidas de ternura;
Seu canto veste os montes de verdura!
E esse infinito Vácuo tenebroso,
Quando o sensibiliza o sol radioso,
Sente grande prazer, grande alegria,
E assim nos comunica a luz do dia!
E que loucura as ondas alevanta,
Quando o luar misterioso canta!
Ó mar, à luz do luar! Ó mar profundo,
Em choros que se espalham sobre o mundo!
Ó anjo imenso que, na mão, sustentas
O cálix da amargura e das tormentas!
Tudo é sonho e desejo; céu e inferno.
Abrasa tudo o mesmo fogo eterno.
Vive uma estrela oculta no rochedo,
Crepita a seiva ardente do arvoredo.
Têm pétalas de chama a rosa, o lírio.
A substância das cousas é o delírio.
A vida não é mais que sentimento;
Grande incêndio ateado pelo vento
Do mistério sem fim que esconde Deus
E enluta de negrume o azul dos céus!
A vida é uma rajada esplendorosa,
Perpassando e animando cada cousa...
É doido torvelinho que se eleva
E rasga, de alto a baixo, a fria treva,
Desvendando figuras repentinas,
Formas do amor, aparições divinas!
Poetas, cantai, banhados no clarão,
Que alvorece da infinda comoção,
Que de estrelas orvalha a Imensidade
E em meus olhos é lágrima e saudade...
Poetas, cantai a vida, o bem e o mal!
Consumi-vos no incêndio universal,
Que enche de labaredas o Infinito!
E é Deus, talvez, num desespero! Um grito
De Deus! Grito de dor incandescente,
Na eterna escuridão, eternamente!
( Teixeira de Pascoais - Amarante, 1877 - 1952 )

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

UM MUITO BOM FIM DE SEMANA

Com um forte abraço.

O MAR, SEMPRE O MAR, GRANDE POEMA, O MAR

Cada vez amo mais o mar e o Silêncio.
Cada vez amo mais as gaivotas e a sinfonia das ondas.
Cada vez amo mais ser pescador e estar sozinho junto do mar.
Cada vez sinto mais companhia no Silêncio da música das ondas.
Cada vez mais, sei que junto do mar e ouvindo a sua canção, pertenço a um Bem Maior.
Cada vez mais, amo a Natureza.
Cada vez mais, sinto-me mais leve, respirando a pureza da maresia.
A tranquilidade da música do mar e do seu azul e do azul do ceu
São a minha única tranquilidade.
Não a troco por nada deste mundo.
O MAR É O GRANDE POEMA.
E embalado por este sentimento sinto-me maior do que eu,
maior do que todas as confusões do eu!.
Canta , mar.
Canta amor de mar. Canta ribamar.
Canta ao sabor da espuma que voa pelo ar.
Palavras simples, estas, não pensadas, apenas para dizer
Que junto da canção do mar, do que é simples, do que sacia a alma,
Do que enche o coração, isso basta.
Obrigado, ó Mar.
Eduardo Aleixo

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Convidado da semana: Antoine de Saint-Exupéry

" Foi então que apareceu a raposa:
- Bom dia, disse a raposa.
- Bom dia, respondeu o principezinho com delicadeza. Mas ao voltar-se não viu ninguém.
- Estou aqui, disse a voz, debaixo da macieira...
- Quem és tu?, disse o principezinho. És bem bonita...
- Sou uma raposa, disse a raposa.
- Anda brincar comigo, propôs-lhe o principezinho. Estou tão triste...
- Não posso brincar contigo, disse a raposa. Ainda ninguém me cativou.
- Ah!, perdão, disse o principezinho.
Mas, depois de ter reflectido, acrescentou:
- Que significa " cativar "?
- Tu não deves ser daqui, disse a raposa. Que procuras?
- Procuro os homens, disse o principezinho. Que significa " cativar "?
- Os homens, disse a raposa, têm espingardas e caçam. É uma maçada!. Também criam galinhas. É o único interesse que lhes acho. Andas à procura de galinhas?
-Não, disse o principezinho. Ando à procura de amigos. Que significa " cativar "?
- É uma coisa de que toda a gente se esqueceu, disse a raposa. Significa " criar laços..."
- Criar laços?
- Isso mesmo, disse a raposa. Para mim, não passas, por enquanto, de um rapazinho em tudo igual a cem mil rapazinhos. E eu não preciso de ti. E tu não precisas de mim. Para ti, não passo de uma raposa igual a cem mil raposas. Mas, se me cativares, precisaremos um do outro. Serás para mim único no mundo. Serei única no mundo para ti...
- Começo a compreender, disse o principezinho. Existe uma flor...creio que ela me cativou.
- É possível, disse a raposa. Vê-se de tudo à superfície da Terra...
- Oh! , não é na Terra, disse o principezinho.
A raposa mostrou-se muito intrigada.
- Noutro planeta?
- Sim.
- Há caçadores nesse tal planeta?
- Não.
- Isso tem muito interesse. E galinhas?
- Não.
-A perfeição não existe, suspirou a raposa.
Mas voltou à mesma ideia:
- Levo uma vida monótona. Eu caço galinhas e os homens caçam-me a mim. Todas as galinhas são iguais e todos os homens são iguais. Por isso me aborreço um pouco. Mas, se tu me cativares, será como se o sol iluminasse a minha vida. Distinguirei, de todos os passos, um novo ruído de passos. Os outros passos fazem-me esconder debaixo da terra. Os teus hão-de atrair-me para fora da toca, como uma música. E depois, olha! Vês lá adiante os campos de trigo? Eu não como pão. O trigo para mim é inútil. Os campos de trigo não me dizem nada. E é triste. Mas os teus cabelos são cor de oiro. Por isso, quando me tiveres cativado, vai ser maravilhoso. Como o trigo é doirado, fará lembrar-me de ti. E hei-de amar o barulho do vento através do trigo...
A raposa calou-se e olhou por muito tempo para o principezinho.
- Cativa-me, por favor, disse ela.
- Tenho muito gosto, respondeu o principezinho, mas falta-me tempo. Preciso de descobrir amigos e conhecer muitas coisas.
- Só se conhecem as coisas que se cativam, disse a raposa. Os homens já não têm tempo para tomar conhecimento de nada. Compram coisas aos mercadores. Mas como não existem mercadores de amigos, os homens já não têm amigos. Se queres um amigo, cativa-me.
- Como é que hei-de fazer, disse o principezinho.
- Tens de ter muita paciência, respondeu a raposa. Primeiro, sentas-te um pouco afastado de mim, assim, na relva. Eu olho para ti pelo rabinho do olho e tu não dizes nada. A linguagem é uma fonte de mal-entendidos. Mas, de dia para dia, podes sentar-te cada vez mais perto...
No dia seguinte, o principezinho voltou.
- Era melhor teres vindo à mesma hora, disse a raposa. Se vieres, por exemplo, às quatro horas da tarde, às três já eu começo a ser feliz. À medida que o tempo avançar, mais feliz me sentirei. Às quatro horas já começarei a agitar-me e a inquietar-me; descobrirei o preço da felicidade. Mas se vieres a uma hora qualquer, nunca posso saber a que horas hei-de vestir o meu coração...São precisos ritos.
- O que é um rito?, disse o principezinho.
-É também qualquer coisa de que toda a gente se esqueceu, disse a raposa. É o que faz com que um dia seja diferente dos outros dias, uma hora diferente das outras horas. Há um rito, por exemplo, entre os meus caçadores. Dançam às quintas-feiras com as raparigas da aldeia. A quinta-feira é, por isso, um dia maravilhoso! Vou passear até à vinha. Se os caçadores dançassem num dia qualquer, os dias seriam todos iguais, e eu não teria férias.
Foi assim que o principezinho cativou a raposa. E quando se aproximou a hora da partida:
- Ah!, disse a raposa...Vou chorar.
- A culpa é tua, disse o principezinho, não queria que te acontecesse mal, mas quiseste que te cativasse...
- É certo, disse a raposa.
- Mas vais chorar!, disse o principezinho.
- É certo, disse a raposa.
- Então, não ganhas nada com isso!
- Ganho, sim, disse a raposa, por causa da cor do trigo.
Depois, acrescentou:
- Vai ver outra vez as rosas. Compreenderás que a tua é única no mundo. Quando voltares para me dizer adeus, faço-te presente de um segredo.
O principezinho foi ver outra vez as rosas.
- Vós não sois nada parecidas com a minha rosa; ainda não sois nada, disse-lhes ele. Ninguém vos cativou, nem vós cativastes ninguém. Sois como era a minha raposa.Não passava de uma raposa igual a cem mil raposas. Mas fiz dela minha amiga e agora é única no mundo.
E as rosas ficaram bastante aborrecidas.
- Vós sois belas, mas vazias, disse-lhes mais. Ninguém vai morrer por vós. É certo que, quanto à minha rosa, qualquer vulgar transeunte julgará que ela se vos assemelha. Mas, sozinha, ela vale mais do que vós todas juntas, porque foi ela que eu reguei. Porque foi ela que pus numa redoma. Porque foi ela que abriguei com um biombo. Porque foi por causa dela que matei as lagartas ( excepto duas ou três para as borboletas ). Porque foi ela e só ela que ouvi lamentar-se ou gabar-se, ou mesmo, por vezes, calar-se. Porque é a minha rosa.
E voltando para junto da raposa:
- Adeus, disse ele.
- Adeus, disse a raposa. Vou dizer-te o meu segredo. É muito simples: só se vê bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos.
- O essencial é invisível para os olhos, repetiu o principezinho, a fim de se recordar.
-Foi o tempo que perdeste com a tua rosa que tornou a tua rosa tão importante.
- Foi o tempo que perdi com a minha rosa...repetiu o principezinho, a fim de se recordar.
- Os homens esqueceram esta verdade. Mas tu não deves esquecê-la. Ficas para sempre responsável por aquele que cativaste. És responsável pela tua rosa.
- Sou responsável pela minha rosa, repetiu o principezinho, a fim de se recordar.
( Antoine de Saint- Exupéry , in " O Principezinho )

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

DEFINIÇÃO DE LUZ

( Conforme consta em participação no blogue de Angel of Light, " Keep Your mind wide open ) .
A luz cintila na transparência do teu olhar,
no tom calmo e firme da tua voz,
na serenidade da tua presença,
na frescura leve e suave das manhãs,
na beleza tranquila e reconfortante dos poentes,
na limpidez das águas correntes dos ribeiros,
na leveza com que dançam as folhas das árvores do outono
e nas gotas de orvalho
que os anjos bebem ao pequeno almoço
antes que os pássaros acordem para anunciar as madrugadas...
Eduardo Aleixo

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

ADIVINHA :)

Olá a todos! Vamos ver quem acerta ( ATÉ AO DIA 20 DE DEZEMBRO, INCLUSIVÉ ), na resposta a esta adivinha??? "O que é que eu não tenho, e que não gostaria de ter, Mas que se tivesse, Não gostaria nunca de perder??" O vencedor ganha um prémio surpresa assim que eu chegar a Portugal.... PUXEM PELA CABEÇA Beijos a tod@s Rita

( Da outra face )

( Foto de E. Aleixo )
Poema
Tento deslisar sem esforço, e com atenção ilimitada rodeio os penhascos conhecidos e os obstáculos inimaginados. Recuso os choques. Corto , sem tempo, os nós mergulhados nas articulações dos ossos do espaço e do tempo. Caminho nos caminhos invisíveis e silenciosos do silêncio. Tenho como destino um bosque de amor, harmonioso e perfumado. Eduardo Aleixo

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Em memória de António Alçada Baptista

A PEQUENA HISTÓRIA
As palavras interditas
" Às vezes gosto de folhear papeis velhos. Num destes dias, estive a reler uns papeis que o meu sogro cá deixou. Ele era o Engº Nobre Guedes, que foi fundador e primeiro Comissário Nacional da Mocidade Portuguesa.
Conta aí que, quando foi do lançamento da Mocidade Portuguesa Feminina, fez um pequeno projecto sobre o que seria a iniciativa, para o Salazar ver e dar o seu concordo. Dizia nesse papel, entre outras coisas, que a mulher moderna devia ser « desenvolta », que devia praticar desporto,inclusive «natação». O papel foi ao Salazar e ele riscou as duas palavras: « desenvolta » e « natação ». A verdade é que, no seu universo, não cabia a possibilidade de uma instituição pública fomentar isto de a mulher se sentir à vontade no mundo e muito menos a possibilidade de vestir um fato de banho".
( António Alçada Baptista, in " A Pesca à Linha, Algumas Memórias " )

domingo, 7 de dezembro de 2008

O mar, o GRANDE POEMA

( Foto Google )
Desta vez, bravio. Ainda sem gaivotas...Com nevoeiro intenso. Por que adoro o mar?!
O mar é o GRANDE POEMA.
Um dia... o meu amigo, Amaral Marques, escreveu um poema enorme, sobre o mar. Muitas páginas...
No Café Paladium, em Lisboa, começámos a fazer cortes no poema. Era muito grande. As mesmas ideias repetidas. O poema tinha de sair perfeito. E fomos cortando. Cortando. Até que pouco ficou.
- Ó, Amaral - lamentei eu - demos cabo do poema do mar, do mar... que é o Grande Poema!
Então, o meu querido amigo ficou a olhar-me, com os ollhos esbugalhados, cintilantes. Quase me assustou: fiquei a seguir o seu olhar na direcção do infinito, donde o sorriso potente dele , transformado em gargalhada triunfante, me puxou, assim como puxou as suas lágrimas que assomaram às janelas dos seus olhos, ao mesmo tempo que, agarrando as minhas mãos com a força da emoção, gaguejou infantilmente:
- Eduardo, salvámos o poema...
- Como?!
- Tu disseste, sem querer: o Mar é o grande poema...
Então rimos, rimos, rimos...
Lembras-te, Amaral?
Eduardo Aleixo

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

O mistério do nevoeiro na serra de Sintra

De caminho para o Algueirão, aonde me desloco, duas vezes por semana, a uma escola de correcção, para levar o meu cão, o Gwyn, que tem um problema de desvio comportamental, olho para a serra de Sintra e acho que já não é a mesma, aquela serra que bem conheço, instável e transmutável nas suas névoas e nos seus firmamentos azulados, o que me fazia logo saber como estavam as praias para os lados da Adraga ou para os lados de Carcavelos, mas , nos últimos tempos, as coisas complicaram-se : enquanto as gaivotas abandonaram as praias e estão em meditação, ponderando a hipótese de luta, à maneira delas, o nevoeiro sobre a serra de Sintra é permanente, cada vez se adensa mais, o ar já é irrespirável, ultrapassando o problema, ao que nos dizem, o nível autárquico e nacional, sugerindo-se que as responsabilidades do mesmo deverão ser imputadas à crise da Névoa Internacional, é o que ouço, na rádio do Oeste , com os olhos colados nas nuvens brancas que encobrem a serra, se querem mesmo saber dou a palavra ao meu Gwyn, que é inteligente, sensível e politizado, e a quem delego a responsabilidade de mostrar com fidelidade a coerência do discurso oficial, que a rádio debita, para que a minha imagem fique poupada, como se costuma fazer, ainda ontem o nosso primeiro o fez, em relação aos professores, não falou sobre o assunto, delegou no secretário de estado, salvo erro, o mesmo faço eu, pois que fale o meu cão, com o devido respeito pelo secretário de estado, não é essa a minha intenção, o meu cão, dizia eu, que tem desvio comportamental, mas que é meigo, lindo, inteligente, e a quem não fazem com facilidade o ninho atrás da orelha, neste aspecto é mais lúcido e político do que os funcionários públicos, em geral, a cuja classe, aliás, me honro de pertencer, funcionários que têm sido o bombo da festa, coisa que nunca foi devidamente evidenciada, mas bem-feito, não fizeram como os professores, quando houve greves tiveram medo de perder o salário e de de serem prejudicados na avaliação, não a fizeram, a greve, como intimamente desejavam, no entanto levaram estes últimos anos uma vida de inferno por causa da avaliação, vendo serem promovidos os amigos dos chefes, que deram aos amigos ou a quem já exercia funções de coordenação, por exemplo, os prémios das quotas pré-estabelecidas, e agora ( e agora, José? ) não há mais quotas para os outros, muitos deles bem mais inteligentes e mais competentes, mas ouçam o cão, o assunto é o nevoeiro, a questão é: o nevoeiro sobe ou baixa sobre o país, isto é, sobre a serra de Sintra, deixando-a definitivamente queimada, arrasada, derrotada no campo de batalha, como o rei D. Sebastião, ou em banho-maria, como os processos da pedofilia, da corrupção, das casas da Câmara e dos outros em que entra, sempre, gente influente, mas ouçam o Gwyn a falar, é como se fosse eu, deleguei-lhe competências, e o Gwyn diz, começa com uma voz calma, de ladrar suave e cavo, nobre, um tom preparado para ficar bem nas câmeras à hora do tele-jornal, mas quem fala na rádio é o nosso primeiro, o cão limita-se a ouvir e a reproduzir, embora à sua maneira, e eu gosto muito de ouvir o meu cão, estou farto dos políticos, fala cão, isto é, reproduz, à tua maneira, que o nevoeiro vai subir, as famílias vão, em 2009, ver os nevoeiros treparem a serra e deixarem vislumbrar o sol, os funcionários públicos, com o aumento salarial que vão ter ( o Gwyn traduziu mal e disse, isto é: ladrou: o trepanço que os funcionários vão ter...) , após sete anos em que perderam já cerca de dez por cento, e foram tratados, com o devido respeito pelo Gwyn, como cães, com esse aumento o sol volta a cair sobre o palácio da serra, , o sol cai, é uma bênção do governo, assim como cai a energia, a gasolina, o gasóleo, tudo isto, não fruto da crise internacional, mas consequência da política do governo, pelo menos é isso que se pretende que seja entendido ( aqui a interpretação é a do dono do cão ) , caem também as taxas de juro para alívio das árvores que ficarão livres da alta taxa de pressão dos incêndios e dos fogos, permitindo às famílias, que abandonaram as casas, devolvidas à Banca, carente de bens, o regresso aos lares, e com esse regresso, o regresso da alegria, cai também a inflação, até que aconteceu que ...o meu cão se calou e mudou de tom.É que, na rádio,outra voz, outro timbre, nada combinados com os escutados anteriormente, o que é estranho e talvez denote algum desnorte na área do poder, tom que era o do ministro das finanças, mais sabedor, vem dizer coisas bem diferentes, ficando as famílias a saberem a verdade sobre as dificuldades que aí vêm, que são de ordem internacional, as famílias ficaram a saber a verdade e ficaram confusas sobre o nevoeiro, que afinal não sobe, mas vai descer, é grande a instabilidade, e começa a fazer-se na serra o mesmo silêncio que há nas praias, com as gaivotas escondidas a pensarem atrás das dunas...
Eduardo Aleixo

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Convidado da semana: Zeca Afonso

Quando a corja topa da janela
O que faz falta
Quando o pão que comes sabe a
merda
O que faz falta
O que faz falta é avisar a malta
O que faz falta
O que faz falta é avisar a malta
O que faz falta
-
Quando nunca a noite foi dormida
O que faz falta
Quando a raiva nunca foi vencida
O que faz falta
O que faz falta é animar a malta
O que faz falta
O que faz falta é acordar a malta
O que faz falta
-
Quando nunca a infância teve infância
O que faz falta
Quando sabes que vai haver dança
O que faz falta
O que faz falta é animar a malta
O que faz falta
O que faz falta é empurrar a malta
O que faz falta
-
Quando um cão te morde uma canela
O que faz falta
Quando à esquina há sempre uma cabeça
O que faz falta
O que faz falta é animar a malta
O que faz falta
O que faz falta é empurrar a malta
O que faz falta
-
Quando um homem dorme na valeta
O que faz falta
Quando dizem que isto é tudo treta
O que faz falta
O que faz falta é agitar a malta
O que faz falta
O que faz falta é libertar a malta
O que faz falta
-
Se o patrão não vai com duas loas
O que faz falta
Se o fascista conspira na sombra
O que faz falta
O que faz falta é avisar a malta
O que faz falta
O que faz falta é dar poder à malta
O que faz falta
-
O que faz falta é avisar a malta
O que faz falta
O que faz falta é avisar a malta
O que faz falta
O que faz falta é acordar a malta
O que faz falta
O que faz falta é empurrar a malta
O que faz falta
O que faz falta é agitar a malta
O que faz falta
O que faz falta é libertar a malta
O que faz falta
O que faz falta é avisar a malta
O que faz falta
O que faz falta é dar poder à malta
O que faz falta.
( Zeca Afonso )

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Barca Bela

Pescador da barca bela,
Onde vais pescar com ela,
Que é tão bela,
Ó pescador?
-
Não vês que a última estrela
No céu nublado se vela?
Colhe a vela,
Ó pescador!
-
Deita o lanço com cautela,
Que a sereia canta bela...
Mas cautela,
Ó pescador!
-
Não se enrede a rede nela,
Que perdido é remo e vela
Só de vê-la,
Ó pescador.
-
Pescador da barca bela,
Inda é tempo, foge dela,
Foge dela,
Ó pescador!
( Almeida Garrett, 1799-1854 )

As minhas asas

Eu tinha umas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Que, em me eu cansando da terra ,
Batia-as, voava ao céu.
-
- Eram brancas, brancas, brancas,
Como as do anjo que mas deu:
Eu inocente como elas ,
Por isso voava ao céu.
-
Veio a cobiça da terra,
Vinha para me tentar;
Por seus montes de tesouros
Minhas asas não quis dar.
- Veio a ambição, coas grandezas,
Vinham para mas cortar,
Davam-me poder e glória;
Por nenhum preço as quis dar.
-
Porque as minhas asas brancas,
asas que um anjo me deu,
Em me eu cansando da terra
Batia-as, voava ao céu.
-
Mas uma noite sem lua
Que eu contemplava as estrelas,
E já suspenso da terra,
Ia voar para elas,
- Deixei descair os olhos
Do céu alto e das estrelas...
Vi, entre a névoa da terra,
Outra luz mais bela que elas.
-
E as minhas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Para a terra me pesavam,
Já não se erguiam no céu.
-
Cegou-me essa luz funesta
De enfeitiçados amores...
Fatal amor, negra hora
Foi aquela hora de dores!
- Tudo perdi nessa hora
Que provei nos seus amores
O doce fel do deleite,
O acre prazer das dores.
-
E as minhas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Pena a pena, me caíram...
Nunca mais voei ao céu.
( Almeida Garrett - Porto, 1799 - 1854 )

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

QUEM GANHOU A CONCHA FOI......

A atribuição da concha de S. Tomé obedeceu aos seguintes critérios, escritos no meu post, de 26 de Novembro, com o título, " ATENÇÂO ":
1. « Quem acertar no seu nome ( do poeta ) receberá um prémio...» 2. A « concha será entregue a quem, em primeiro lugar ( mais cedo no tempo) disser o nome do poeta...»
Assim, não pude tomar em consideração quem indicou mais do que um nome ( foi o caso do blogue, O Cheiro da Ilha, a despeito de ter sido o primeiro a indicar, mas juntamente com muitos outros nomes , o nome de Camões ). Tenho a certeza de que a Maria compreenderá as minhas razões.
Quem indicou o nome de Camões , e só o seu nome, foi um Anónimo. Lamento não poder atribuir-lhe o prémio por se tratar de um Anónimo. Mais do que uma vez, neste blogue, tenho pedido para que as pessoas se identifiquem. E neste caso o meu lamento ainda é maior, porque a análise que fez no seu comentário foi brilhante. Fico à espera que me dê a conhecer o seu nome e desejo do fundo do coração que continue a fazer parte da família do À Beira de Àgua.
O blogue que acabou por preencher os requisitos exigidos ( um só nome, o de Camões, e sua comunicação mais cedo no tempo ,como podem comprovar, acedendo ao post respectivo ) é: - PICO MINHA ILHA. parabéns. Resta-me agradecer a todos o modo entusiástico com que aderiram à ideia, dar-lhes muitos abraços de amizade e de ternura e dizer-lhes que ... há mais conchas para distribuir no futuro.
Quanto ao blogue, Pico minha Ilha, e tendo em vista combinar o modo de entrega da concha, peço-lhe para me contactar através do meu email, que se encontra no meu Perfil. Não tendo o email do blogue vencedor não vejo outra maneira de o contactar.
BOM FIM DE SEMANA PARA TODOS, ATÉ AO DIA 2 DE DEZEMBRO. QUE ME VOY ATÉ RONDA - SEVILHA. Eduardo

Convidado da semana: Luís de Camões

1. Descalça vai para a fonte
Descalça vai para a fonte
Leonor pela verdura;
vai fermosa e não segura.
-
Leva na cabeça o pote,
o testo nas mãos de prata,
cinta de fina escarlata,
sainho de chamalote;
traz a vasquinha de cote,
mais branca que a neve pura;
vai fermosa e não segura.
-
Descobre a touca a garganta,
cabelos de ouro o trançado,
fita de cor de encarnado,
tão linda que o mundo espanta;
chove nela graça tanta
que dá graça à fermosura;
Vai fermosa e não segura.
2. Aquela triste e leda madrugada
Aquela triste e leda madrugada,
cheia toda de mágoa e de piedade,
enquanto houver no mundo saudade
quero que seja sempre celebrada.
Ela só, quando amena e marchetada
saía, dando ao mundo claridade,
viu apartar-se de ûa outra vontade,
que nunca poderá ver-se apartada.
-
Ela só viu as lágrimas em fio,
que de uns e de outros olhos derivadas
se acrescentaram em grande e largo rio.
-
Ela viu as palavras magoadas
que puderam tornar o fogo frio,
e dar descanso às almas condenadas.
3. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
muda-se o ser, muda-se a confiança;
todo o mundo é composto de mudança,
tomando sempre novas qualidades.
-
Continuamente vemos novidades,
diferentes em tudo da esperança;
do mal ficam as mágoas na lembrança,
e do bem ( se algum houver ), as saudades.
-
O tempo cobre o chão de verde manto,
que já coberto foi de neve fria,
e, em mim, converte em choro o doce canto.
-
E, afora este mudar-se cada dia,
outra mudança faz de mor espanto,
que não se muda já como soía.
4. Fala do velho do Restelo - de os "Lusíadas"
( extracto )
Mas um velho, d'aspeito venerando,
Que ficava nas praias, entre a gente,
Postos em nós os olhos, meneando
Três vezes a cabeça, descontente,
A voz pesada um pouco alevantando,
Que nós no mar ouvimos claramente,
Cum saber só d'experiências feito,
Tais palavras tirou do experto peito:
-
" Ó glória de mandar, ó vã cobiça
Desta vaidade, a quem chamamos Fama!
Ó fraudulento gosto, que se atiça
Cûa aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles exp'rimentas!
-
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Deixas criar às portas o inimigo,
Por ires buscar outro de tão longe,
Por quem se despovoe o Reino Antigo,
Se enfraqueça e se vá deitando a longe;
Buscas o incerto e incógnito perigo
Por que a Fama te exalte e te lisonje
Chamando-te senhor, com larga cópia,
Da Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia!
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5. Amor é um fogo que arde sem se ver
Amor é um fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.
-
É um querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre as gentes;
é nunca contentar-se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.
-
É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.
-
Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo amor?
( Luís de Camões, 1524 ? - 1580 )

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

O silêncio das gaivotas contado pela estrela do mar - continuação (2)

«As gaivotas andam recolhidas - começou ela , após um momento de silêncio. A coisa já dura desde o ano passado, mas o silêncio das gaivotas só aparece com a ordem dada pelas autoridades de despedirem o faroleiro. Ora elas só obedecem ao faroleiro.»
« Tu estás bem?! Com a tua cultura, os teus conhecimentos ... continuas a querer viver nesta poça, neste isolamento? », perguntei.Mas sem resposta.
« As gaivotas nasceram para voar, pescar e serem livres. Agora, querem dar-lhes outras funções! »

À medida que falava, os mexilhões aproximavam-se com respeito e os ouriços deslocavam-se imperceptivelmente na direcção da estrela , que, no seu cantinho, apenas movia a boca no centro do seu corpo . A água na poça era transparente, reflectia o azul do céu e tremia de modo permanente devido aos movimentos dançantes dos filamentos da planta marinha.

« Mas que outra funções»?, perguntei, intrigado.
« É preciso conhecer a história destes bichos, que são livres, e não domesticáveis. Não são bichos fáceis. Nunca foram. Só há coisa de uma centena de anos é que existe paz na costa , e em concreto nesta costa, oeste. São bichos de culturas diferentes. De saberes diferentes. Uma gaivota de Peniche é diferente de uma gaivota de Santa Cruz...»

« Pois sim, mas... falaste em funções , falaste em faroleiro...»
« Falei em faroleiro porque elas só obedecem aos faroleiros. Foram os faroleiros da costa que pacificaram o mundo das gaivotas. Só eles, aliás, o poderiam ter feito, porque receberam o conhecimento das gaivotas como herança dos seus antepassados. E elas sabem. E elas amam os faroleiros, mesmo que com eles discutam. Acabaram as guerras a partir do momento em que lhes foram distribuídas praias e rochedos, isto é, zonas para elas morarem. Onde têm morado e vivido, felizes, até ao dia em que foram chamadas ao faroleiro e este lhes disse ter recebido ordens superiores de que o mundo das gaivotas devia mudar radicalmente...»

« Mas quem manda no faroleiro, e qual o motivo da mudança? », perguntei, confuso.

« Quem manda no faroleiro é o chamado Ministério da Onda , que antes nunca se meteu nestes assuntos do mar, mas que agora vem dizer que com a globalização , não sei que mais, das questões marinhas e dos requisitos da excelência, coisas assim... as regras passaram a ser universais e a abranger drasticamente o mundo das gaivotas...
A bicharada na poça dizia que sim com as cabeças, os mexilhões abriam e fechavam as suas conchas de cor escarlate, os ouriços tinham os espinhos mais eriçados, as lapas descolaram levemente as suas conchas , mostrando os olhos aquiescentes, e os peixinhos navegavam parados, com a atenção suspensa...

« Desculpa lá, mas qual o motivo invocado pelo faroleiro para não cumprir a ordem?
« O faroleiro não cumpre essa ordem, e não cumprindo, pode ser afastado », esclareceu a estrela.
« Mas que ordem é essa e a que funções te referes? E qual o motivo por que as gaivotas estão escondidas e não aparecem nas praias? »
Aqui ela fez silêncio. O silêncio dela foi acompanhado por ligeira crispação dos corpos dos bichos em redor e reparei na paragem súbita da dança dos filamentos da planta marinha. Senti que o assunto era delicado e que a estrela precisava de medir as palavras. Seguindo o seu olhar, vi, no cimo das arribas, duas gaivotas adultas, que nos olhavam, denunciando que estavam ali desde o princípio atentas à nossa conversa.
- É melhor continuarmos a conversa noutro dia... - sibilou a estrela, olhando-me com aquele ar conspirativo, que herdou dos tempos antigos, quando militou no MRPP...
- Mas..
-É por causa da maré. - esclareceu - Está a subir. Podes ficar isolado e não teres tempo para saltares dos rochedos para o areal
- Ate manhã - despedi-me eu.
- Até.... - acenou-me ela, levantando a pontinha de uma das suas hastes de estrela, que logo se recolheu, para se proteger das primeiras águas trazidas por uma onda da enchente.
NOTA: A continuação, ou não, desta estória, depende da natureza, confidencial ou não , do que tenha para ouvir da parte da estrela do mar...)
Eduardo Aleixo

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

ATENÇÃO

Na sexa-feira, dia 28, este blogue vai receber, como convidado, um poeta.
Quem acertar no seu nome receberá um prémio, que darei com toda a alegria. O prémio é uma concha, rara, de S. Tomé e Príncipe. Podem vê-la no lado direito do blogue. É um poeta muito grande de Portugal. Muito grande, repito. A concha será entregue a quem, em primeiro lugar ( mais cedo no tempo ), disser o nome do poeta, em comentário a este post, até ao último segundo desta quinra-feira, dia 27 de Novembro. Boa sorte. Já está a contar. Eduardo Aleixo

O mistério do silêncio das gaivotas contado pela estrela do mar

Não é normal que não se vejam as gaivotas. Também não é normal , com uma vazante assim, que não se vejam homens, de calças arregaçadas, a apanharem mexilhões, ou polvos, ou lapas, no meio dos rochedos. Também é estranho que com um mar tão chão nem um pescador desportivo se veja. Está um lindo dia de sol de Novembro. Como sempre faço, aos fins de semana, passeio-me junto do mar, e perscruto as diversas tonalidades do azul e do verde ao longo de uma estrada que tem como alvo as Berlengas .
Hoje, as ondas deslizam suavemente e estendem os braços de espuma, que se espreguiçam languidamente na areia castanha da praia. Nem um barco; e as poucas pessoas na praia expõem os corpos ao belo sol da manhã.
As gaivotas não me saem do pensamento. Estou habituado a vê-las, em manhãs assim, reunidas em aglomerados, como se fossem famílias. Se ali estivessem, afastar-se-iam à medida que me fosse aproximando, em voos curtos, com excepção das mais jovens, que, essas, ou iniciam grandes e rápidas marchas na areia molhada, junto da rebentação, ou então ensaiam voos rasantes sobre as cristas das ondas, deixando-me a ideia de que andam a treinar as asas ainda jovens. Acho estranho que não estejam na praia quase deserta, onde costumo vê-las felizes e contentes. Ponho-me a pensar neste mistério... E foi então que me lembrei da estrela do mar!..
Só ela me pode explicar o mistério! Só ela sabe da vida de todos os bichos que vivem na costa, quer na terra quer no mar. Já há uma certo tempo que não a visito!...
Como tem mau feitio, fingirá, a princípio, que não me vê chegar, que não tem qualquer interesse na minha visita, mas, no fundo, não é assim: são mais as coisas que nos unem do que aquelas que nos separam, ou, se não são mais, são deveras essenciais, embora esta conclusão nos tenha chegado, presumo eu, a cada um no espaço próprio da sua intimidade, muito tempo depois das tempestades, que trouxeram mágoas , lavadas no entanto pela sabedoria das marés. Foi no tempo das mágoas que ela se retirou para a poça dos rochedos , descrente do amor, poça onde vive e pode ser vista na vazante, juntamente com mexilhões, lapas, ouriços do mar,búzios e plantas marinhas de filamentos ondulantes, e pequenos peixes, que perderam o comboio da vazante e ficaram, por distracção, sem água, para irem com as carruagens do mar.

Depois de algum tempo de silêncio, ela ergueu os seus olhos castanhos para mim e disse-me:

- Já sei ao que vens: queres saber o que se passa com as gaivotas...
( talvez possa ter continuação... )
Eduardo Aleixo

terça-feira, 25 de novembro de 2008

Poema tirado de uma notícia de jornal

João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro
da Babilónia num barracão sem número.
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.
( Manuel Bandeira )

domingo, 23 de novembro de 2008

ECO

Hoje, perguntando onde estás, e o
que fazes, ouço as palavras tristes
da solidão que me responde, sem
nada me dizer, ao dizer-me tudo.
-
O que fazes e onde estás, pergunto
ao silêncio que me deixaste; e ouço
em mim a resposta, num eco que
vem de ti, perguntando por mim.
-
E neste espelho que entre mim e ti
a ausência constrói, outro espelho
reflecte o vazio da sua imagem, até
-
esse infinito em que a minha pergunta
te responde, para que me devolvas
o eco em que as nossas vozes se juntam.
( Nuno Júdice, in " O Breve Sentimento do Eterno " )

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Convidado da semana: Mário Cesariny

1. falta por aqui uma grande razão
uma razão que não seja só uma palavra
ou um coração
ou um meneio de cabeças após o regozijo
ou um risco na mão
ou um cão
ou um braço para a história
da imaginação
-
podemos pois está claro
transferir-nos
imaginar durante um quarto de hora
os séculos que virão
- os séculos um
e dois
da colonização -
depois
depois é este cair na madrugada ardente
na madrugada de constantemente
sem sol
e sem arpão
-
faltas tu faltas tu
falta que te completem
ou destruam
não da maneira rilkeana vigilante mortal solícita e obrigada
- não, de nenhuma maneira resultante!
nem mesmo o amor
não é o amor que falta
-
falta uma grande realmente razão
apenas entrevista durante as negociações
oclusa na operação do fuzilamento cantante
rodoviária na chama dos esforços hercúleos
morta no corpo a corpo do ismo contra ismo
-
falta uma flor
mas antes de arrancada
-
falta, ó Lautréamont, não só que todo o figo coma o seu burro
mas que todos os burros se comam a si mesmos
que todos os amores palavras propensões sistemas de palavras e
de propensões
se comam a si mesmos
muitas horas por dia até de manhã cedo
até que só reste o a o b e o c das coisas
para o espanto dos parvos
que aliás não estão a mais
-
isso eu o espero
e o faço
junto à imagem da
criança morta
depois que Pablo Picasso devorou o seu figo
sobre o cadáver dela
e longas filas de bandeiras esperam
devorar Picasso
que é perto da criança, ao lado da boca minha
2. no país no país no país onde os homens
são só até ao joelho
e o joelho que bom é só até à ilharga
conto os meus dias tangerinas brancas
e vejo a noite Cadillac obsceno
a rodar os meus dias tangerinas brancas
para um passeio na estrada Cadillac obsceno
-
e no país no país e no país país
onde as lindas lindas raparigas são só até ao pescoço
e o pescoço que bom é só até ao artelho
ao passo que o artelho, de proporções mais nobres,
chega atingir o cérebro e as flores da cabeça,
recordo os meus amores liames indestrutíveis
e vejo uma panóplia cidadã do mundo
a dormir nos meus braços liames imdestrutíveis
para que eu escreva com ela, só até à ilharga,
a grande história do amor só até ao pescoço
-
e no país no país que engraçado no país
onde o poeta o poeta é só até à plume
e a plume que bom é só até ao fantasma
ao passo que o fantasma - ora aí está -
não é outro senão a divina criança ( prometida )
uso os meus olhos grandes bons e abertos
e vejo a noite ( on ne passe pas )
dia que grandeza de alma. Honestos porque.
Calafetagem por motivo de obras.
É relativamente queda de água
e já agora hã muito não é doutra maneira
no país onde os homens são só até ao joelho
e o joelho que bom está tão barato

3. poema podendo servir de posfácio

ruas onde o perigo é evidente

braços verdes de práticas ocultas

cadáveres à tona de água

girassóis

e um corpo

um corpo para cortar as lâmpadas do dia

um corpo para descer uma paisagem de aves

para ir de manhã cedo e votar muito tarde

rodeado de anões e de campos de lilases

um corpo para cobrir a tua ausência

como uma colcha

um talher

um perfume

-

isto ou o seu contrário, mas de certa meneira hiante

e com muita gente à volta a ver o que é

isto ou uma população de sessenta mil almas devorando almofadas

escarlates a caminho do mar

e que chegam, ao crepúsculo,

encostadas aos submarinos

-

isto ou um torso desalojado de um verso

e cuja morte é o orgulho de todos

ó pálida cidade construída

como uma febre entre dois patamares!

vamos distribuir ao domicílio

terra para encher candelabros

leitos de fumo para amantes erectos

tabuinhas com palavras interditas

- uma mulher para este que está quase a perder o gosto à vida -

tome lá -

dois netos para essa velha aí no fim da fila - não temos mais -

saquear o museu dar um diadema ao mundo e depois obrigar a

repor no mesmo sítiio

e para ti e para mim, assentes num espaço útil,

veneno para entornar nos olhos do gigante

isto ou um rosto solitário como barco em demanda de

vento calmo para a noite

se nós somos areia que se filtre

a um vento débil entre arbustos pintados

se um propósito deve atingir as suas margens como as correntes

da terra náufragos e tempestade

se o homem das pensões e das hospedarias levanta a sua fronte

da cratera molhada

se na rua o sol brilha como nunca

se por um minuto

vale a pena

esperar

isto ou a alegria igual à simples forma de um pulso

aceso entre a folhagem das mais altas lâmpadas

isto ou a alegria dita o avião de cartas

entrada pela janela saída pelo telhado

ah mas então a pirâmide diz coisas?

então a pirâmide é o segredo de cada um com o mundo?

sim meu amor a pirâmide existe

a pirâmide diz muitíssimas coisas

a pirâmide é a arte de bailar em silêncio

-

e em todo o caso

-

há praças onde esculpir um lírio

zonas subtis de propagação do azul

gestos sem dono barcos sob as flores

uma canção para ouvir-te chegar

( Cesariny, in " UMA GRANDE RAZÃO - Os poemas maiores " )