terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Poema do velho de barbas brancas

Havia um velho de barbas brancas
Que vivia numa cabana
À beira de um ribeiro
Debaixo de um eucalipto.
Como eu gostava dele,
Da sua voz calma,
Do seu olhar sereno,
Do seu sorriso claro!
Passaram muitos anos...
O ribeiro já não existe: foi atolado.
O eucalipto já não existe: foi abatido.
Só o velho de barbas brancas
Permanece bem vivo
Dentro do meu coração!
-
In "As Palavras são de Água"

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Sophia De Mello Breyner Andresen

Aqui nesta praia onde
Não há nenhum vestígio de impureza,
Aqui onde há somente
Ondas tombando ininterruptamente,
Puro espaço e lúcida unidade,
Aqui o tempo apaixonadamente
Encontra a própria liberdade.
Terror de te amar
Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo.
Mal de te amar neste lugar de imperfeição
Onde tudo nos quebra e emudece
Onde tudo nos mente e nos separa.
Este é o tempo
Este é o tempo
Da selva mais obscura
Até o ar azul se tornou grades
E a luz do sol se tornou impura
Esta é a noite
Densa de chacais
Pesada de amargura
Este é o tempo em que os homens renunciam.
Biografia
Tive amigos que morriam, amigos que partiam
Outros quebravam o seu rosto contra o tempo.
Odiei o que era fácil
Procurei-me na luz, no mar, no vento.
As pessoas sensíveis
As pessoas sensíveis não são capazes
De matar galinhas
Porém são capazes
De comer galinhas
O dinheiro cheira a pobre e cheira
À roupa do seu corpo
Aquela roupa
Que depois da chuva secou sobre o corpo
Porque não tinham outra
O dinheiro cheira a pobre e cheira
A roupa
Que depois do suor não foi lavada
Porque não tinham outra.
« Ganharás o pão com o suor do teu rosto»
Assim nos foi imposto
E não:
« Com o suor dos outros ganharás o pão».
Ó vendilhões do templo
Ó construtores
Das grandes estátuas balofas e pesadas
Ó cheios de devoção e de proveito
Perdoai-lhes Senhor
Porque eles sabem o que fazem.
( Do livro Cem Poemas de Sophia )
- já antes postado -

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Não há lugar para as mágoas!

É com elevação o sentimento de unidade
Que sinto no universo com os seres que amo,
Com quem falo no silêncio uma linguagem de amor
Respeitosa, sublime, musical, bater de asas leves,
Harmonia reunida em catedral de rosas,
Carícias perfumadas, roçagar de mãos como véus,
Os sorrisos são a música dos regatos,
Suavidade de lua quando acaricio os teus seios...
É estranho! Não há lugar para as mágoas!!...
-
In : As Palavras são de Água

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

É do amor que falo

A dádiva total dos corpos às águas
Que desabam das montanhas.
A vitória dos peixes sobre as pedras.
O riso do sol face ao espanto
Do corvo hierático sobre as rochas.
Canto a placidez das cegonhas
Sobre as calmas enseadas,
O rumorejar dos barcos,
O farfalhar dos choupos,
A correria infantil dos cães
Sobre as areias inclinadas dos rios.
É do amor que falo.
Do riso contra a bruma.
Do teu corpo liberto
Dançando violento sobre o verde
Onde os insectos enlouquecidos
Incomodam a casa que arde
Nas veias do centro da terra descoberta.
Beijo líquido e resinoso à sombra do mês de Abril
Que aspira o aroma do rosmano, das estevas e
Das urzes,
Nudez agreste e calma.
Canto contra a morte
Que nem lembro.
Renasço, pleno, babado de raízes.
Admiro o céu,
As águas sobre o corpo.
Ainda há pouco chorava como um ramo
Em orvalho de manhã
O sonho de ser água.
Criança sem mais nada que o riso numa taça.
A eloquente solidão,
A festa que dança com teu corpo nu e vitorioso
Sobre as dunas...
Quão difícil foi chegarmos à dança com que
Danças,
Sem tempo sobre o tempo!
Difícil, sim, difícil, foi crescermos e nascermos
Para o riso
E para a espuma
Espantada com a leveza das palavras
E o regresso ao vento aberto,
Às ânsias do sol-posto,
Aos dedos,
Loucos de inocência,
Descobrindo as grutas sobre a pele.
A noite já chegou
E eu não tenho mais palavras, meu amor,
Senão conchas em repouso sobre as rosas do
Regresso.
Ajuda-me a escrever este poema de amoras
Mansas, livres,
Com gestos de silêncio,
Com cansaços de quem merece as madrugadas!...
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In As palavras são de água
. Foto Net