quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Berlengas (2)

- Por Raul Brandão
( em " Os Pescadores )
_ continuação...
Desço às cavernas misteriosas de que é furado o ilhéu. Há-as cheias de fetos e um fio de água escorrendo:todo o morro se concentra e espreme para deitar aquelas gotas frígidas. Outra: um entalhe nos paredões de granito, e a onda leva o barco pelo corredor estreito sobre algas com grandes pinceladas de branco nos cabelos.São enormes. São velhíssimas. Sinto que os adivinham e estendem os grandes braços esguios, procurando enlear-nos. Olho para baixo...Todo aquele verde, camada sob camada, remexe até as profundas como cobras agitadas pelo mesmo desejo. Esperam...Esperam a presa.
Quase não há água. Água do mar, só a que se mete entre interstício e interstício de folha. O que há é uma vida escorregadia e verde, um sonho monstruoso, numa luz glauca e movediça, um verde líquido, com transparências doiradas à superfície e que se vai carregando lá para baixo até ao verde-negro, ao verde desespero, que no fundo dos fundos espera, cego e imóvel, a presa para a devorar. Anos atrás de anos passam na meia obscuridade da caverna, choque-choque...É um ruído de passos ou a água nas pedras? Choque- apagado, mole, longínquo...Os filamentos verdes enrodilham-se, flutuam ao lume de água ou repousam como braços inertes. Toquem-lhes e logo a mesma ânsia eléctrica os sacode e se transmite até à escuridão concentrada que se alvoroça...Os remos pegam-se a esta carne movediça e sob as tábuas sinto o contacto da vegetação que nos pressente. Cair aqui é ser apanhado por braços piores que os do polvo, que nos sugam, é ser estreitado e submergido em camadas escorregadias e tenazes ao mesmo tempo, envolto em milhares de cabelos ávidos, e descer entranhado num pesadelo verde e mole. Não há a que deitar as mãos. É a viscosidade, a vida obscura, inconsciente e verde, que, com a força e a tenacidade da inércia, acabam por nos afogar num poço sempre mais fundo; cada vez mais fundo, cada vez mais escorregadio e mais fundo...
Mal se vê: uma espuma e um fio azul estremecendo ao cimo da babugem. O corredor aperta-se e o barco desliza num túnel. Mais escuro - e as algas à esperada presa...Esperam anos. Meto a mão, retiro-a logo com medo das peles gelatinosas e frias. Nos penedos negros, chapadas mais escuras com estrias vermelhas e buracos que se afundam lá para dentro, para a espessura incógnita. Na penumbra, a luz que vem de fora reflecte em ondas nas muralhas o movimento incessante das águas. Claridade ao longe, mais luz, e desemboco numa esmeralda engastada em vermelho, numa praia de areia intacta e fina, entre paredões temerosos cor de ferrugem. Em cima a nesga do céu. Dum lado o poço entreabre-se e vê-se o mar num rasgão para lá das rochas que lhe defendem a entrada. Um fio de areia dourada...Ilumina-o uma luz fria de fiorde, uma luz morta de paisagem lunar - uma luz que é silêncio ao mesmo tempo. Serena. Serena e indiferente como este espírito que habita a ilha, belo, feminino, solitário e perverso - e que deve ter aqui o seu antro...Água imóvel e silêncio transido. Na areia onde ninguém desembarca, descubro uma pegada intacta, o molde delicado de um pé de mulher.
Volto, subo ao planalto e espero a noite debruçado sobre a praia misteriosa. A sombra corta o abismo em diagonal, deixando um paredão iluminado; mas, como a lua avança, a escuridão desloca-se e abranjo um pedaço indeciso do fundo. Luar, farrapos suspensos da muralha a pique, nichos com silêncios, onde a luz escorre, tecendo fios como uma aranha nas paredes duma catedral desmantelada. Uma ave remexe no ninho e torna o silêncio mais pesado e maior. Lá em baixo fios estremecem no alto da ondulação. Reluzem, apagam-se e o recanto da sombra redobra de espessura, cosido com a parede como um malfeitor. Desenham-se arabescos fantásticos no abismo, que assume proporções extraordinárias de profundidade e de mistério: lá em baixo, com a assistência dos monstros nos nichos - que olham e calam - passa-se qualquer coisa que pertence antes ao sonho. Um pedaço de luar, de repente, coalha na sombra; todos os fios brilham ao mesmo tempo como a baba dum caracol à luz primeira da manhã; figuras ténues, que vão desfazer-se num sopro, saem enlaçadas do escuro, numa ronda silenciosa - que se some no negrume e reaparece outra vez. Estou de muito alto e a luz é muito fraca...Mas já não tenho dúvidas: são as nereidas, filhas da incestuosa Dóris, no seu último domínio...
( Agosto de 1919 )
Raul Brandão
( em Os Pescadores )

- continua...

10 comentários:

FERNANDINHA & POEMAS disse...

aolá querido Amigo, belíssimo texto de Raul Brandão... Amigo, maravilhoso... Adorei!
Beijinhos de carinho e ternura,
Fernandinha

Maria disse...

Vou ficar à espera da "continuação"...
Conheço a ilha (as ilhas) como a palma das minhas mãos...

Um beijo

Graça Pires disse...

Esta perfeita forma de escrever na nossa língua! Lendo este texto fiquei cheia de vontade de reler Raul Brandão: Os Pescadores, ou a Morte do Palhaço, ou outro qualquer, será bom lembrar esta escrita...
Um abraço, amigo.

poetaeusou . . . disse...

*
actualmente,
estão um pouco diferentes,
do tempo em que raul brandão,
na traineira Altiva, fez uma
das suas viagens á Berlenga,
,
parabens, amigo,
,
saudações,
,
*

Rosa Brava disse...

Uma excelente partilha, que vou continuara a ler.

Um abraço e continuação de boa semana ;)

poetaeusou . . . disse...

*
raul brandão,
num hino
á lingua portuguesa . . .
,
abraço
,
*

Unknown disse...

Fernandinha

Obrigado sempre pelas suas palavras gentis.
Beijo.
Eduardo

Unknown disse...

Graça Pires

Contente por vê-la por aqui.
Sim,vale a pena a gente reler este maravilhoso escritor do Mar.
Abraço, amiga.
EA

Unknown disse...

Poetaeusou

Obrigado, amigo.
Veja o meu comentário ao texto de Maria, em Berlengas 3.
Bom fim de semana.
Abraços.
EA

Unknown disse...

Rosa Brava

Contente pela sua visita.
Bom fim de semana.
EA