Crónica
Dizia-me ele com emoção mal contida na voz, o cigarro suspenso nos dedos nervosos, um semblante ingénuo de criança que não consegue guardar mais um segredo, que ia ser promovido a partir de Novembro, depois de vinte anos de sacrifícios calados, de humilhações sem coragem de revolta. Mas aí estava ela, enfim, embora já o apanhasse velho e cansado, a ocasião por que tanto ansiara! O que lhe tinha custado! Quantas visitas diárias ao gabinete do Director de Serviços! Quantas viagens à sala do Chefe de Secção para tratar de " casos bicudos" que os pobres funcionários não tinham competência para resolver! Quantas canseiras no cerimonial de tirar e pôr o casaco, de cada vez que era chamado ao gabinete do Chefe de Serviços! Quantos dias e dias, anos e anos, em que aprendera a esquecer os sonhos justos da adolescência, as leituras de bons autores, a música dos clássicos que nos momentos de nostalgia gosta de recordar como se se quisesse encontrar com uma pureza antiga - para chegar a este momento sagrado em que se sente um velho!
Enquanto o ouvia, àquela hora calma, numa Repartição vazia, rodeados de papeis e de processos em bicha, à espera, que é o cenário anquilosante da vida burocrática, não deixava de ficar espantado com aquela mudança nele, que comigo tinha discussões de morte, porque eu faltava muito ao trabalho só porque precisava de tempo para estudar; porque lhe dizia que seria útil trabalhar-se com música de fundo, a qual amenizaria certamente a aridez do trabalho puramente manual, mecanicista, funcional; que, ao contrário do que ele afirmava, nós não éramos máquinas, mas homens e mulheres, de carne e osso, com cérebro, sensibilidade e até dotados de ideias novas e válidas; que já não vivíamos no tempo do artesanato medieval, mas dos computadores que evitariam grande percentagem de papeis e de dinheiro esbanjado inutilmente; que não era utopia, era verdade, em muitos lugares do mundo e mesmo em Portugal; que a importância não estava na gravata, mas na inteligência e sinceridade das pessoas; que se podia muito bem trabalhar sem estar em pose e em silêncio...Por isso me espantava a mudança nele, o seu ar confidencial, como se eu fosse o único a compreendê-lo e à sua alegria triunfante comunicada com carinho, assim, sem barreiras de chefe para funcionário, como se fossemos camaradas e irmãos...
No fundo, eu que o conhecia e sabia que ele não era intimamente, profundamente, como se mostrava, austero, frio, defensor do homem-máquina, mas tinha, por motivos vários e deploráveis, aprendido a fechar na gaveta os sonhos humaníssimos e possíveis, que, em certos momentos de desânimo e de desesperança, abria, como se olhasse para o seu rosto verdadeiro ( e era então que falávamos sobre Beethoven, Jorge Amado, Máximo Gorki ...), respondi-lhe, ironicamente, que era a altura de ir pondo de lado uns cobres para comprar uns fatiotes mais apresentáveis, umas gravatas com mais nível, compatíveis com o seu novo posto. Ele, limpando a cinza do cigarro, sentando-se a rir da minha piada muito séria, respondeu-me com seriedade: « E olhe que tem razão. Já viu com que cara vou entrar no gabinete do senhor Presidente ( sim, porque vou passar a trabalhar de paredes meias com o senhor Presidente ) com esta farpela rasca e estas camisas de meia tigela? Não! Agora o caro Tavares tem de mudar de cenário. Havia de ser bonito!Claro que isto é mesmo assim...»
E a conversa terminou com a mesma solenidade com que tinha começado. Só que eu esperava que ele se lembrasse ainda da gaveta onde tinha os sonhos da adolescência metidos! Mas não! A gaveta estava fechada. À chave. Tinha-a fechado naquele preciso momento. Ou antes, quando soubera da notícia célebre que o deixara envaidecido!
Só eu fiquei triste. Nunca mais falaríamos de Beethoven. Nem de Jorge Amado. Nem de Gorky. Iam-me levar o Tavares para bem longe. Para lugares inacessíveis. Já não iria reconhecer o Tavares dali a uns tempos. Quando a gaveta estivesse velha. Cheia de pó. Como ele. Gaveta do que foi Tavares. De que não precisa já. De que nunca precisou afinal. Que nunca desejou profundamente. Talvez os filhos a abram um dia e fiquem espantados e tristes e desiludidos pelas coisas lá dentro, esquecidas, violadas, como flores amachucadas, ou pérolas submersas pela ferrugem da indiferença.
Eduardo Aleixo
19 comentários:
O Tavares foi, mas a gaveta ficou.
Cadinho RoCo
Caro Amigo,
Obrigada pela visita ao meu blogue Voo Longo. Li o seu texto que muito me tocou... Por vezes as pessoas esquecem o mais importante da vida e depois espantam-se de se sentirem vazias! Nunca feche a sua gaveta!
Maria Carmo
Um bonito texto, sentido,
nostálgico.
Um abraço
Adorei a crónica! Obrigada pelo momento.
Jinhos
Coitado do Tavares. Foi tratar da 'vidinha'. Uma gaveta de sonhos trocada por um fatinho novo. Opções. Que deus lhe dê guarida com música do Quim Barreiros e um livrinho da Rebelo Pinto.
Bonita crónica.
Um abraço,
PM
ficou a gaveta com a saudade e os sonhos...
beijinhos
A gaveta vai sempre estar. O Tavares terá sempre o seu espaço. Apesar de ...
Belíssimo texto que retrata tantos Eduardos e tantos Tavares.
beijinhos, águia
QUANTA NOSTALGIA, MEU AMIGO... UM GRANDE ABRAÇO,
FERNANDINHA
Submersa em pérolas que enferrujam com palavras desditas me pego aqui à beira de água saciando minha sede de poesia!
Grata Edu!
bjus.
Elaine Siderlí.
Sim, Eduardo, é urgente o encontro dentro de nós para que não fiquemos presos a qualquer gaveta.
Hoje o meu dia amanheceu feliz e tu sabes porquê. Nunca se fecha uma janela que não se abra uma porta. Neste caso, muito amor entrará por ela...
A Maria manda lembranças ao Zé. mas que rica parelha!!!
Um beijo,
Lucy
e na gaveta encerraram-se os sonhos e a vida com a cor que só os sonhos lhe podem dar...e é triste quando assim é, triste porque uma parte muito importante de nós morre com o encerrar dessa gaveta. Mas acredito que haja sempre um momento em que a saudade nos faz pegar na chave e abri-la.
Adorei o texto
beijos
Por vezes os sonhos são esquecidos na gaveta e então só pó e nada mais a gaveta contém.As gavetas devem sempre estar abertas para a vida e para o bem.Beijinhos
Gostei desta gaveta...
Beijinho, Eduardo*
Olá, de novo!
O Fernando Madureira era muito meu amigo.
Entre outras coisas muito boas, tem um romance "Acidente Ocidental".
O poema que lhe dediquei, creio que tem esse, ou semelhante título.
Mas esse poema não está no meu último livro. É dum outro anterior que, agora não sei bem.
O meu último livro, saído em Dezembro é "Itinerário", das edições Edium.
Um forte abraço.
Bonita crónica!
Em todas as vidas há uma gaveta de sonhos, umas vezes acontecem, outras permanecem simplesmente intocáveis!
Beijinhos,
Ana Martins
Uma espera sem sentido, uma vida adiada na esperança de um futuro que não é...!
Não te sabia a escrever assim...!
Gostei bastante,para quando uma crónica da Ria Formosa? Prometeste!
Beijo
Bom fim de semana
Bossemecê por onde anda que estou aqui à porta há um ror de tempo? Está metido na gabeta?
Ó sinhore, num deixe que essa gabeta fexe os seus sonhos. Se for preciso, eu digo ao Zé e ele abre-a c'um um pé de cabra.
Mas eu bim pr'a le dezer que hoje o dia amanheceu oitra bez! E é bom quando este sole aquece a gente. Tibe logo 3 calorzinhos pela manhã. Quando se tem amigos num se morre preso dentro de uma gabeta. Eles renobam os nossos sonhos e dizem que estão sempre alerta, a bigiar o nosso sono.
Num sonhei com o mar, porque precisaba de um gabetão, mas a atracção que existe neste Uniberso faz-se sentir à distância, bem tudo na hora certa.
Um abraço p'ra si e oitro p'ró Zé do Telhado que já bi que é munto seu amigo.
Sua ademiradora e amiga,
Maria da Fonte
ola
passei por aqui para desejar bom fim de semana
beijinhos
Podemos dar a volta que dermos que se não levarmos os sonhos, a infelicidade estará sempre presente
Bj
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