quarta-feira, 3 de março de 2010

Convidado de Março: Raul de Carvalho

Teu coração de guitarra
-
Amor, como tu és belo!
O rosto, os cabelos, os olhos,
- ah, sobretudo os olhos!
Canta, guitarra, canta!
-
A felicidade, a tristeza, a solidão,
a bondade, a pureza dos teus olhos!
Alguma vez eu saberei dizer
a pureza que desprendem
os teus olhos?
-
Tu, amor, és a grande pureza,
esse total e infinito corpo
ao mesmo tempo estrela e terra.
És carícia e ninguém.
És a criança entre as crianças.
-
Amor, quando tu ris
dir-se-ia que as tuas
gargalhadas são azuis
ninhos suspensos em futuros sóis.
-
beijos sempre de amor,
-
que é a tua alma
cantando e dançando
ao redor do sol,
-
que é todo o teu perfil ainda inclinado
ao colo da tua mãe,
-
que é o medo que tens de dizer que tens medo
a teu pai,
-
que é tudo quanto tens
de meu, porque te amo.
-
As estrelas despenteiam a cabeleira intacta
e passeiam, velozes, no céu, enquanto ris.
E é de oiro o teu riso, amor, ele é de oiro!
É ele que te busca e te leva e te espalha
ao largo e ao longo
do céu.
-
Longe, e perto, e alto, todavia mais alto!
De noite e de dia, mais alto!
Na vida e na morte, mais alto!
-
Mais alto do que tudo
o que existe no mundo:
tudo o que existe, amor,
só porque tu existes.
-
Ris, e a cada momento
nasce uma criança alegre como tu:
alegre e bela e pura como tu.
-
Por que não te fez Deus igual aos anjos?
Por que não nasceste
mais cedo,mais tarde, ou nunca?
Por que não és como os outros,
que dizem que a água
do mar não é azul,
que os lábios não são beijos,
que as estrelas não brilham,
que os pássaros não voam,
que o sangue não atinge
nas veias a altura
das ondas, dos pássaros, das estrelas, dos beijos?
-
Amor, por que nasceste
com a música?
-
Ah, por que não deslizas
e desapareces,
e te perdes no espaço,
para sempre no espaço?
-
Por que não abandonas
a tua aparência
e tomas, maravilhoso, a límpida forma do cristal?
-
Nasces, e a cada momento
em ti me dissolvo.
-
Só durmo quando dormes.
E, mesmo assim, acordo
primeiro.
-
Para dar a notícia
ao Sol
de que acordaste.
-
Para que seja virgem
a aurora
e mais nova e sonora
a alegria.
-
Busco-te
como rio que busca
só em ti a origem,
só em ti o sentido
e o mistério
da morte, tanto como da vida.
-
Amor, se eu pudesse matava-te.
-
Com as mãos ainda frescas por teus beijos,
ainda humanas e claras
as mãos, os olhos ainda húmidos
de ver com os teus olhos quanto vejo.
-
Com tudo, e foi tanto e tão pouco
o que me deste.
-
Percorrendo contigo sucessivas cidades,
matava-te.
Em cada ser que possuísse, matava-te.
Em cada esperança que tivesse, matava-te.
De cada vez que me sorrisses, matava-te.
Só para te esquecer, amor.
-
Havia de beijar um a um os teus dedos,
teus dedos que são
as cinco pontas de uma estrela,
Havia de apertá-los, devagar, lentamente,
ao redor do teu rosto
sempre meu e ausente.
-
Vendo-te, querendo-te, amando-te - matar-te.
-
Para que a morte fosse
a tua e minha amiga,
a nossa mãe que vem
buscar-nos finalmente.
-
Para que,
todos os dias cumpridos,
corpos e almas reunidos,
viesse, enfim viesse
para nós dois o único, o possível, o sagrado repouso.
-
Ou seja: a tua enorme e definitiva e contínua presença.
-
In POESIA, de Raul de Carvalho

5 comentários:

Maria Ribeiro disse...

EDUARDO: quando se ama verdadeiramente, sente-se ,com mais premência, a falta do outro..
ABRAÇO DE
LUSIBERO

Graça Pires disse...

Raul de Carvalho é um poeta excelente mas muito esquecido...
Foi muito bom encontrá-lo aqui.
O brigada e um beijo, Eduardo

Paula Raposo disse...

Maravilha de poema. Uma homenagem bem merecida. Gostei imenso, Eduardo!
Beijos.

Unknown disse...

Olá Eduardo...

Gostei muito...lindo!
Que maravilha...

beijinho de boa noite

Sonhadora (Rosa Maria) disse...

Meu querido Eduardo
como é lindo este poema...adoro Raul de Carvalho.

beijinhos
Sonhadora