terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Convidada de Fevereiro: Marguerite Yourcenar

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Foto Google

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CECCHINO DEI BRACCHI

" Eu, Miguel Ângelo, entalhador de pedra, desenhei nesta abóbada a imagem de um jovem de Florença que eu amava e que não existe mais. Ele está sentado numa atitude hostil e os seus braços dobrados parece esconderem o seu coração. Mas os mortos têm talvez um segredo que não querem que nós conheçamos.
Amei em primeiro lugar os meus sonhos porque não conhecia outra coisa. Depois amei a minha família ( que era, parece-me agora, como se me amasse a mim mesmo ) e os amigos que vinham a mim carregados de tanta beleza que eu me sentia ao mesmo tempo humilhado e feliz. Por fim amei uma mulher. Os meus pais morreram. Os meus amigos, os meus amados partiram: uns deixaram-me para viver, outros traíram-me com a sepultura. Dos que restam, eu duvido; mesmo que as minhas suspeitas sejam injustas, sofro tanto como se o não fossem porque é no nosso espírito que tudo se passa. A mulher que amei também se foi deste mundo como uma estrangeira que se dá conta de que se enganou na porta e de que a sua casa é noutro sítio. Então pus-me de novo a amar os meus sonhos porque não me restava mais nada. Mas os sonhos também podem trair e agora eu estou só.
Amamos porque não somos capazes de suportar estar sós. E é pela mesma razão que temos medo da morte. Quando por vezes disse em voz alta que gostava de alguém, via à minha volta piscadelas de olho e meneios de cabeça como se aqueles que me ouviam se julgassem meus cúmplices ou se sentissem com direito a serem meus juízes. Os que não vos acusam procuram desculpar-vos e isso é pior ainda. Por exemplo, uma vez amei uma mulher. Quando falo só de uma mulher não estou a falar nas outras, as passantes que não são mulheres, mas sim a mulher e a carne. Amei uma só mulher, que não desejei, e quando penso nisso ainda não sei se era por ela não ser suficientemente bonita ou por sê-lo de mais. Mas as pessoas não compreendem que a beleza possa ser um obstáculo que aplaca o desejo antes de ele nascer. Esses mesmos que nós amamos não o compreendem ou não querem compreendê-lo. Espantam-se, sofrem, resignam-se. Depois morrem. Então começamos a temer que a nossa renúncia tenha pecado contra nós mesmos, e o nosso desejo, agora sem saída, tornado irreal e obsessivo como um fantasma, torna-se monstruoso como tudo aquilo que não chegou a ser. De todos os remorsos do homem, o mais cruel é aquilo que ficou por realizar.

Amar alguém não é simplesmente querer que ele viva, é também espantar-se que ele deixe de viver, como se morrer não fosse natural. E no entanto, ser é um milagre mais surpreendente do que não ser; é diante daqueles que vivem que deveríamos ajoelhar como diante de um altar. Imagino que a natureza se cansa de resistir ao nada, como o homem de resistir às solicitações do caos. Na minha existência, mergulhada, à medida que avanço em anos, em períodos cada vez mais crepusculares, vi repetidamente formas de vida perfeita darem lugar a outras mais perto da humildade primitiva, tal e qual como a lama é mais antiga que o granito; e aquele que talha as estátuas não faz mais, no fundo, do que apressar o esboroamento da montanha. O bronze da sepultura do meu pai enche-se de verdete num cemitério de aldeia, a imagem do jovem de Florença há-de começar a escamar-se nas abóbadas que pintei, os poemas que fiz à mulher que amei não serão compreendidos dentro de poucos anos, e essa é uma maneira de os poemas morrerem. Querer imobilizar a vida é a danação de escultor. É talvez nesse sentido que toda a minha obra é contra a natureza. O mármore em que julgamos fixar uma forma efémera de vida retoma a cada instante o seu lugar na natureza, pela erosão, pela pátina, pelos jogos de luz e de sombra em planos que pareciam abstractos mas que são afinal a superfície de uma pedra. Assim, a eterna mobilidade do universo suscita sem dúvida a admiração ou o espanto do Criador.
Beijei, antes que a pusessem no caixão, a mão da única mulher que para mim dava sentido à vida toda, mas não beijei os seus lábios, e agora tenho pena, como se eles tivessem podido ensinar-me qualquer coisa. Também não beijei o jovem de Florença, nem as suas mãos, nem o seu rosto claro. Mas esse não o lamento, era demasiado belo. Era perfeito como aqueles que nada pode atingir, pois os mortos são todos impassíveis. Vi muitos mortos. O meu pai, retornado à sua raça, não era mais do que um Buonarroti anónimo: libertara-se do fardo de ser ele; na humildade da morte, ele apagava-se até ao ponto de ser apenas um nome numa longa série de homens; a sua linhagem não desaguava já nele mas em mim, seu sucessor, pois os mortos são só os termos de um problema que se põe, de cada vez, a cada um dos seus continuadores vivos. A mulher que amei, no fim da agonia que a sacudiu como para arrancar-lhe a alma, ficou com um duro e triunfante sorriso a pairar como se, vitoriosa da vida, desprezasse em silêncio a sua adversária vencida, e eu pude ver nela o orgulho de ter ultrapassado a morte. Cecchino dei Bracchi, meu amigo, era simplesmente belo. A sua beleza, que se parcelara em vida em tantos gestos e pensamentos, feitos expressão ou movimento, voltava a ser intacta, absoluta, eterna: parecia que ele tinha composto o corpo antes de o deixar. Vi sorrisos dar cor a lábios exangues, filtrar sob pálpebras cerradas e iluminar tantos rostos. Os mortos repousam satisfeitos numa certeza que nada pode destruir porque é ela que se anula à medida que se cumpre. E porque eles tinham passado além da ciência, eu supus que eles sabiam.
Mas talvez os mortos não saibam que sabem." - In " O TEMPO esse grande escultor " - de Marguerite Yourcenar

9 comentários:

Sonhadora (Rosa Maria) disse...

Meu querido Eduardo
como é lindo o texto que escolheste.
Lindissimo...poético.

Beijinhos
Sonhadora

Unknown disse...

Para mim,Yourcenar continua uma escritora essencial,de se reler sempre.Ela certamente influenciou meu modo de ver o mundo.Obrigado pela postagem.
Um abraço.

gaivota disse...

talvez...
lindíssimo, excelente!
e talvez não saibam que sabem, tantoooooooooooooooooooooo
beijinhos

FOTOS-SUSY disse...

OLA EDUARDO, MARAVILHOSO TEXTO...UMA LINDA ESCOLHA...VOTOS DE UMA BOA TARDE AMIGO!!!
BEIJOS DE CARINHO,


SUSY

Agulheta disse...

Eduardo. Belo o texto escolhido, e só uma pessoa de sensibilidade e escrita,o pode aqui tão bem descrever.
Beijinho e tudo de bom Lisa

Anônimo disse...

Tudo aki é lindooooooooooo
Amei seus textos,a música......tudo de muito bom gosto...Parabéns!!
Agradeço sua visita.......M@ria

FERNANDINHA & POEMAS disse...

QUERIDO AMIGO EDUARDO, JÁ TENHO SAUDADES TUAS... HOJE ENCONTREI-TE NO BLOG DA SONHADORAE FIQUEI FELIZ... BOA NOITE, ABRAÇOS DE MUITO CARINHO E TERNURA,
FERNANDINHA

Fá menor disse...

Um texto muito belo!
Obrigada por me teres dado a oportunidade de o ler.

Bjos

Anônimo disse...

Olá....

Estou aqui
apenas para uma visita breve
sem passaporte ou bandeira.

Sem limites... sem identidade.

Me deixando espalhar em pétalas
para que meu suave perfume um dia seja saudade.


Beijos na tua alma!!