segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Vitorino Nemésio escreve sobre o nosso convidado, Camilo Castelo Branco (2)

« Com uma pala na testa e um tinteiro de ferro ao lado, Camilo passa horas e horas na sua cadeira de baloiço. São-Miguel- de-Seide é Minho: são ares lavados, com boa verdura. Água não falta; nem aquela alegria que enche céu e terra, de Famalicão a Santo -Tirso. Mas onde Camilo chega há logo um dedo de desgraça que toca as coisas. No meio do milho e da luz da quinta, a casa do escritor já em 1880 tem um aspecto sombrio, com aquele obelisco postiço sagrando a visita de Castilho, as janelas da casa de jantar afogadas de trepadeiras, e a árvore de que Raul Brandão fez o espectro e o espelho da vida daquelas pessoas trágicas - Camilo e Ana Plácido - acordadas do sonho e do desespero pelos ramos que batiam nos vidros. Uma Florinha ou uma esgalha seca da «acácia do Jorge» davam-lhes com indiferença os sinais de Abril e do Inverno.

Camilo diz em 1864, nas VINTE HORAS DE LITEIRA: « o meu gabinete de trabalho, durante os meses esplêndidos do ano, é um contínuo começo de noute». Para ler ou escrever precisa das portas fechadas, além da odiosa pala verde. De maneira que a sala, enorme, afunilada ao alto por profundos tectos de maceira, com aquele lúgubre candeeiro de suspensão ao meio, tem uma densidade aflitiva. Aquele canapé Império fala-nos das visitas misteriosas de personagens expedidos há muito para os editores do Porto, e que agora voltam a Camilo com uma identidade civil -, ou aqueles que, como o cego de Landim, partem do cartão de visita para os domínios da ficção. Vêm vê-lo empalar as suas sombras, vêm provocar-lhe aquelas palavras supremas que ele precisa dizer aos sofás antes de as provar nos livros, aqueles azedumes comovidos e de repente cortados por uma diabólica gargalhada.
(...) Lá fora bem podem cantar os passarinhos, chiar o carro minhoto ou cair um rápido orvalho em cima das cerejas bicais. Ali não há alegria. Ali, é aquele canapé com aquela visita, a meia dúzia de cadeiras austríacas, o piano fechado, e, quando nem Camilo nem o estranho têm já que dizer um ao outro, a sombra de Ana Plácido que entra. A voz da visita parece uma troça quando chama « Senhora Viscondessa» àquela mulher gorda e triste, que vai por trás da poltrona de Camilo direita ao candeeiro americano preparar a torcida ao lusco-fusco.
Outras vezes não é Saint-Preux nenhum, mas algum amigo desinteressado e recente, como Freitas Fortuna, que foi padrinho daquele casamento serôdio celebrado de noite pelo Abade de Santo-Ildefonso, e que, desde os consolos da hora aziaga até ao jazigo emprestado, tudo facilitou. Outras vezes, ainda, é algum cónego letrado, como Alves Mendes ou Sena Freitas, que vem desabafar sobre Lisboa e a sua falta de vergonha e de vernáculo; ou um Tomás Ribeiro, inquieto para passar ao quintal e encher de inscrições imorredoiras a casca dos carvalhos cerquinhos que Camilo prefere para varapaus e boa sombra.
Uns e outros enchem o crepúsculo daquele homem com a rara consolação das palavras gratuitas. Agora que não há Sebenta-Bolas-e-Bulas, nem Alexandre da Conceição para dar exercício àquela violência febril, fazer o gosto ao dedo no fel do tinteiro de ferro; agora que também não há lágrimas para desatar de olhos de meninas, nem ramos de plantas secas para lhes insinuar nos livros - , que venham ao menos aqueles conhecidos e amigos puxar pela língua ao velho quase cego, tomar a temperatura ao desespero daquela casa, acabar com os bilhetinhos de afronta que ele escreve à mulher ali ao lado, num requinte de maldade e de dor.
(...) Em 1885 Camilo não pode mais. O pouco que ganha, gasta-o em andadas desesperadas, de Seide ao Bom-Jesus, de Seide ao Porto, do Porto à Póvoa, a ver se se livra daquele demónio que o possui, misto de frenesim e de remorso, cólera sem nome que ele aplaca palpando o estoque da bengala, ou a coronha do revólver hull-dog debaixo do travesseiro. Lívida, Ana Plácido carrega o revólver de cápsulas inofensivas. Mas o estratagema falhou. Camilo é mestre em fecharias de clavinas e balas de todos os calibres. Faz pontaria ao tecto. Nem um chamusco...Percebe tudo. Saberá procurar a carga na hora própria.
Entretanto, têm pena dele. Os ódios mais grados passaram; a pedra de escândalo do rapto estava sossegada, numa espécie de lodo quente. Já se podia fazer da ex-mulher do brasileiro uma viscondessa constitucional. Quando Barjona levou o decreto à assinatura do Rei, talvez D. Luís se lembrasse que seu irmão visitara um dia um preso, que o arquivo das cadeias da Relação do Porto registava « de estatura regular, rosto comprido, trigueiro, bexigoso».
Agora, em 1885, vinte e cinco anos depois, em « testemunho da minha real consideração e do apreço em que tenho o seu distinto merecimento literário», lá o fazia visconde... As Cortes perdoaram-lhe os direitos de mercê. Essas, faziam-no em « testemunho de preito nacional pelo formosíssimo talento do brilhante escritor».Só uma voz se ergueu contra. O sr. Simões Ferreira entendia que a Câmara dos Deputados não fora feita para « dar distinções aos homens» que « não tenham concorrido para melhorar o estado moral e intelectual da sociedade», - e, a seu ver, Camilo estava abaixo da craveira.
(...) Depois, é o que se sabe: cegueira irrevogável e aquele desespero horrível, enquanto a pobre senhora acompanhava à escada o último especialista que o viera desenganar.
(...) Uma coroa de túlipas « em fundo de violetas de bosque e folhagem», com fitas roxas estreitas, e pretas de moiré largas ( se O Comércio do Porto não mente ), dizia só isto: PROFUNDA SAUDADE A SEU ESTREMECIDO AVÔ - CAMILO E CAMILA.
Que mais era preciso para Deus lhe perdoar? »
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Vitorino Nemésio, in de " Camilo , in Ondas Médias", Ed. Bertrand, s.d., (1945 ).

3 comentários:

Lucília Benvinda disse...

Muito interessantes estes relatos sobre a vida de Camilo. Este 'negrume' da sua vida é suplantado pela genialidade da escrita, pelo humor tão evidente em muitas das suas obras, a começar pelas Vinte Horas de Liteira.

Quem lê Amor de Perdição pode ficar desapontado e nunca mais quere ler Camilo, mas não, há muitos livres cheios de uma subtileza de espírito, de uma aguçadada ironia, para além de uma mestria de linguagem quase incomparável.

Já agora, podes dizer qual o endereço dos outros depoimentos (se assim se podem chamar)?

Obrigada por relembrares Camilo, jamais me cansarei de o ler.

Um abraço,
Lucy

gaivota disse...

e pelas letras de um maravilhoso açoreano, temos mais umas "coisinhas" fantásticas do nosso camilo!
parabéns, eduardo
beijinhos

Lucília Benvinda disse...

Edu,

Não resisti, levei estas "visões" de Camilo até às "Noites de Insónia" - para o blogue, também.

Quando puderes, publica mais.
Merci.

Lu