terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Alentejo

em carne viva

( Livro de José Manuel Silva ) -

CONTOS BREVES
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Cavalo de lançamento
Jacinto Afonso da Palma, Jacintinho para os ganhões e velhas criadas que o viram nascer e a quem dera pontapés nas canelas, era o morgado do Monte Branco.
O senhor seu pai bem quisera fazer dele doutor veterinário, mas nem os mestres vindos de Beja duas vezes por semana para o ensinarem em sua própria casa o haviam conseguido.
Um grande marau é que ele era !
Os amigos que, amiúde, convidava para as valentes caçadas que organizava nas coutadas do pai, deveras maravilhados ficavam com as habilidades dos galgos que treinara a correr atrás das lebres naquelas chadas e naqueles imensos restolhos.

( Foto do blogue À Beira de Água )

Jacintinho era também, sem dúvida, o melhor freguês do casino de Monte Gordo, onde esbanjava as herdades que o pai lhe deixara. Não raras vezes, era vê-lo, relaxado e bêbado que nem um cacho, a exigir a continência do porteiro impecavelmente trajado, e a atear lume aos cigarros que ia enrolando não com mortalhas "zig-zag" mas com notas de mil que sacava de dentro das botas caneleiras.

" Que leve o diab'alma", dizia.

Da apeiragem, das munilhas (1) e gorpelhas (2), e dos moios de trigo que lhe acarretavam os ceifeiros que, todos os anos, se arrimavam à portela do monte a pedir trabalho ou a falca, trazendo apenas consigo uma saca vazia de guano com dois tirantes e o corte da foice enrolado em trapos, mais os canudos e as dedeiras, não queria ele saber!

Muito menos, quase nada , se importava com as sopas de almece, as açordas cegas e a meia dúzia de figos e boletas com que ele e o pai sempre trataram os ganhões que do nascer ao pôr mourejavam naqueles córregos, ou nas barreiras esconsas do Vascão.

" Tem avondo"(3), disse, vá lá, uma vez,quando, a mando do pai, o sargento da Guarda chicoteava duas crianças que a uma das suas herdades tinham id0 buscar um feixe de lenha para se aquecerem e um taleigo de bolotas para matarem a fome.

Sim, porque, entendia o Palma velho, já bastava os bandos de pombos bravos para partilharem as bolotas com as varas de bácoros que nos montados se faziam valentes "sovões" (4).

Isaura era filha de um seareiro que fazia uma courela de terra delgada, que só lhe trazia codilhos, tal era a maquia que todos os anos tinha de pagar.

Jacinto não sabia ao certo quantos anos ela tinha. Rosto de criança e corpo, já espigado, de mulher, trajando de chita, ainda não teria treze anos.

Conhecido, como era, por cavalo de lançamento, que fazia inveja ao da Herdadinha, porque era useiro e vezeiro em fazer pouco das filhas de cada um, a quem chamava poldras novas, tratou, aleivoso, de fazer-lhe a corte.

Isaura, coitadinha, que, dizia a mãe, já começara a andar com as ventas cheias de esterco, " envaída" (5), ficou logo presa pelos beiços, e acabou por cair na esparrela num dia em que saíu por aqueles barrancos a apanhar saramagos para o burro que lavrava " de carramate" (6), mais um braçado de leitugas para o bácoro, ainda sem arganel, que esperavam matar por altura do Natal.

E só quando o seu rosto trigueiro, que dir-se-ia modelado a cinzel, começou a ficar com pano, é que Felisbela deu conta de que a filha estava enganada.

Isaura, num balho (7) de Entrudo, cantou:

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" Eu hei-de morrer em nova/ Que é para mais pena deixar... / Já que o meu bem não faz caso/ Ponha outra em meu lugar..." /

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Na manhã seguinte, na " arramada" (8), porque Jacintinho não fez caso dela, pôs um baraço ao pescoço, ainda a filha não tinha dois anos. E o pai, que jurou em público estraçalhar à navalhada o velhaco do Jacintinho, foi, no dia seguinte, ainda o sol não tinha nascido, quando estava prestes a abalar para o Pego Escuro, preso por duas praças da Guarda. -
(1) Aparelho colocado sobre o pescoço das bestas (2)Aparelho para carga colocado sobre o dorso das bestas (3) Basta! (4) Porcos gordos. (5) Seduzida (6) Lavrar só com uma besta (7) Baile (8) Cavalariça -

In "Alentejo,

em carne viva- Contos breves-"

de José Manuel Silva

7 comentários:

gaivota disse...

uma história do alentejo que pode bem ser de qualquer canto...
malandrossssss estes "jacintinhos"!
pelos jetos do falejar, é alentejo vivo, de que também gosto, e da cozinha...
beijinhos

Mírtilo MR disse...

Eduardo:

Belo conto de Alentejo, de Mértola, do José Manuel Silva, com linguagem simples e própria do Alentejo, incluindo termos populares e também relacionados com o trabalho do campo, os animais ...
Conto de cariz rural qual quadro de vida a opor e impor lavradores a seus trabalhadores, ou ganhões, ou a opor e impor ricos a pobres, que por essa alentejana Mértola bem se conheceu ainda por esses tempos dos anos cinquenta e sessenta, mas muito mais e piormente nos anos para trás.
Muito boa escolha a tua para aqui inserires.

Um abraço.
Mírtilo

Sonhadora (Rosa Maria) disse...

Eduardo
Um lindo conto do meu Alentejo, que é conto, mas passava-se mesmo assim no Alentejo.

Muito menos, quase nada , se importava com as sopas de almece, as açordas cegas e a meia dúzia de figos e boletas

Há tanto tempo que não via escrito BOLETAS, como se diz mesmo no Alentejo.
adorei.

Beijinhos
Sonhadora

Paula Raposo disse...

Obrigada pela partilha! Adorei! Beijos.

Anônimo disse...

Memória de um Alentejo para muitos desconhecido mas de que me lembro muito bem. E não foi preciso ler o Manuel da Fonseca, o Almeida Faria, o Antunes da Siva, o Urbano Tavares Rodrigues: estava lá e vi.
Venham mais contos!
PM

Luis Ferreira disse...

Não só gostei de conhecer esta obra como os textos que o meu amigo publica.

Os meus parabéns por este belo momento, onde as palavras deslizam suavemente contando historias

Um abraço
Luis

Unknown disse...

Amigo José Manuel, foi com muito gosto que tive conhecimento do teu livro de contos sobre a nossa terra, sobre a nossa infância, mais do que nós , sobre o nosso povo, a nossa cultura, tão exemplificada no teu livro, que tenho o prazer de ver no meu blogue, e deixa-me dar-te um abraço de parabéns e recebe a minha amizade. Quando e sempre que quiseres tens o À Beiura de Água sempre de braços abertos.