segunda-feira, 27 de abril de 2009

Poema

- de Raul de Carvalho
( Alvito, 1920- 1984 )
Leva-me!, ó moreno
peito da beleza,
ó curva silvestre,
soluço selvagem,
macio leito,
quente mão no ombro,
passos silenciosos e miúdos
pela casa abandonada que somos,
aqui onde estamos,
aqui onde esperamos
por ti.
-
Por tuas mãos longas e prometidas,
teus cabelos de orvalho,
tua camisa de dormir feita de luar,
renda de estrelas que os meus olhos cobiçam,
seda que envolve e acalma os músculos,
meu frágil e cintilante corpo da noite.
-
Ó inquieta voz
que me chamas,
ó luz
que me cegas e guias,
ó cuidado maternal comigo,
ó minha miséria e glória,
meu entusiasmo sem motivo,
meu riso sem alegria,
meu amor sem pecado,
ó sangue que segues dormindo confuso,
pequenas gotas brilhantes,
ó vívida e santa e impudica forma de possuir-te,
ó solidão temperada só pela solidão,
ó recurso vão
à seca flâmula,
à morta madeira,
ao álcool esmagado
nas veias,
ó misericórdia
da claridade
abrindo as fechadas
janelas
do nosso abrigo,
-
ó palavra, nua,
deitada, nua,
na areia, nua,
da praia.
ó palavra encostada
no colo das águas,
-
ó aproximação
da confluente
população dos símbolos.
-
ó união
com o miolo das
espécies,
com o alvéolo
leve
das andorinhas,
com o poderoso e louco
porte das águias,
com a altura que geme
na loucura que teme
na nossa ambição de dormir
sobre a terra lavrada e molhada.
-
Ó bênção que me acolhes,
tecto que me cobres,
mão que me conheces,
razão que me compreendes,
olhos que me choram,
saudade que tens, por min,
de um encontro.
-
Ó anjo posto
no pilar da torre,
no túmulo, na estrela,
no lume da fronte humana,
lápide, perfume,
lâmpada e sândalo,
sandália que calças
uns pés nus de virgem.
-
Ó conciliante e conciliadora,
ó irradiante e reveladora,
ó cura completa
da palavra na boca
do poeta

8 comentários:

Anônimo disse...

Boa escolha de um grande poeta da nossa 'Pátria Alentejana' condenado ao silêncio pela lei do 'best seller'.
Um abraço,
PM

Paula Raposo disse...

Um fabuloso poema...beijos.

utopia das palavras disse...

Um poema genial. Não sabia que o poeta era alentejano! Gostei imenso de o ler!

"...a altura que geme
na loucura que teme
na nossa ambição de dormir
sobre a terra lavrada e molhada."

Beijo

Maria da Fonte disse...

Cum catano, Zé... nunca mais acababa o poema. É preciso bere qu'eu só sei soletrare!

Gostei munto, inté parece uma declaraçon d'amore! E como este sinhore é alentejano, demora munto a dezê-la... e assinhe bai embalando a gente.

Zé, diz a esse poeta que já le dei a resposta certa.

Arrecebe uma palmada nas costas, por causa de ninguém falar male de nós.

Unknown disse...

Pedro

É de facto um grande poeta da nossa Pátria Alentejana!
Cada vez acho mais que foi um erro estratégico não termos reiindicado a Independência!
Todos os que quisessem ir para o Algarve teriam de pagar portagem.
Abraço

Unknown disse...

Ausenda

Vocês, algarvios, sempre nos menosprezaram! E entre vocês, os do litoral eram os bons, e os da serra, os sertanejos, eram sem classificação. Tu és do litoral. és da boa cepa...

Unknown disse...

Maria da Fonte

Estou-me nas tintas para que digam mal... Nós, alentejanos, estamos habituados. Somos de peito aberto.
Gosti de te ouvire.Foi declaração damori, foi, que é o que nã nos falta na planura.
O Zé do Telhado também é filho de Deus. Nã sabe ler um livro, mas ouve a voz da Natureza. E vive feliz na sua cabana.

Clotilde S. disse...

Uma bela escolha, Eduardo!

E já agora, viva o Alentejo !

Beijinhos