ENSAIO
Se há escritores que dificilmente podem ser considerados como pertencentes a uma determinada " escola literária ", Antoine de Saint Exupéry é um deles. Se o autor de " Terra dos Homens" tem uma " escola", essa escola é sem adjectivos. É a da Vida, por onde o Homem passa...
Exupéry mergulhou bem fundo no coração dos homens, aí onde o positivismo e a lógica, embora necessários, mas insuficientes para a compreensão da realidade, são substituidos pela ficção, pelo mundo do silêncio, da relação do Homem com o invisível, legando à humanidade das páginas mais belas da literatura do século vinte.
Literatura original. Incidente sobre determinada realidade do Homem, escondida embora, mas essencial à sua compreensão. Um Homem mais compreensível à luz duma psicologia individual do que de uma sociologia, a temática de Exupéry será, por isso mesmo, discutível e até impertinente para muitos e quiçá reaccionária para alguns! O Homem, viu-o ele como algo de essencialmente individual a despeito de viver em sociedade. Mas o maravilhoso do Homem que ele nos desnuda é, de facto, essa sua faceta escondida, que a sociedade ignora e quantas vezes escamoteia e despreza! É todo um mundo interior que se desdobra gradativamente e que ora aproxima o homem ou o afasta do seu semelhante.
No primeiro caso, o Homem é um ser necessariamente responsável ( « ser homem é ser responsável, » escreve ele ). De uma responsabilidade que é, primeiro, uma forma de amor, e só depois o reflexo duma chama grupal. Quando ele conduz os homens, por avião, levando consigo as suas vidas, bem como centenas de cartas, ligando dois continentes, pondo em relação uma multiplicidade de destinos, sente, primeiro, que é grande, por isso mesmo; porque a sua missão é sublime; e que é maravilhoso, por fim, fazer parte de uma sociedade irmanada, que torne possível essa grandeza.
Neste aspecto, ele dá-nos a ideia de ser um condutor de homens. Inflexível. De feição moralizante. Que, muitas vezes, se torna um chefe naturalmente duro, porque são necessários os súbditos e a hierarquia obediente. Aqui se situa, a meu ver, a sua faceta menos simpática à luz de uma doutrina social multiforme que não tolera bem o espírito da hierarquia como ditame e forma de escravização do Homem. Essa escravização, ele não a contesta, nem a polemiza. Apenas a regista, não sorvendo as causas que a teriam engendrado. Em suma: a sua óptica interiorista do Homem não o levou à ponderação intelectual das circunstâncias históricas, que têm uma palavra a dizer sobre a situação precária do mesmo. Assim é que se limita a apresentar-nos o escravo, de súbito liberto, e que não sabendo que fazer da sua liberdade, se volta a apresentar ao seu senhor, para, de novo, o servir e recuperar a sua estrita segurança...
No segundo caso, ela está longe das fronteiras do social. É todo um outro mundo em que se desenha ( sobre que se alicerça ) a felicidade ou infelicidade do Homem. E neste campo a sua originalidade, a sua riqueza poética, a sua verdade, que, apesar de tudo, ninguém deixará de admirar. As relações de amizade e de ódio entrelaçam-se intimamente, tornando difícil traçar uma linha de separação. Os dois maiores inimigos vivem em função um do outro. As suas vidas justificam-se no ódio recíproco. Os dois inimigos acabam por esgotar as suas vidas, pensando-se mutuamente, que é uma forma de se amarem. Quando se encontram, acabam por se falar pela boca dos outros, e não raro, no fragor da batalha, se poupam, até ao último momento, adiando a vingança, porque é essencial continuarem a odiar-se, para que se justifique a espera de um futuro encontro!
As paisagens do Homem são tão originais como aquelas que nos oferece das nuvens, dos raios de sol filtrando-se nelas, da grande solidão do universo em que é sempre saudado festivamente o encontro com as folhas verdes de um oásis, com o sorriso isolado dum ribeiro, com o fumo das chaminés duma aldeia inesperada, marca reconfortante da presença do Homem sobre a terra...
Assim é que o Homem festeja o encontro com o mundo e resgata o seu silêncio original para voltar de novo à sua individualidade em que se abeira do divino. É quase divino quando o avião se despenha sobre as montanhas dos Andes, cobertas de neve, e se vê perdido, chamando a si todas as potencialidades dum pequeno deus. O homem ouve então o seu coração, a grande máquina que luta contra a montanha, e prossegue, construindo a esperança, em cada passo. Descansa. Ouve o pulsar do coração. E vai, até à última pancada deste, ao encontro dos homens. E quando está salvo, a sua estória é uma epopeia! É um epopeia a vaidade com que a conta, sem que jamais alguém se possa apropriar da sua grandeza! O Homem é realmente grande quando vence uma montanha! E mesmo quando nela morre os seus amigos transformam essa morte numa vitória, imortalizando-a, que é uma forma de louvarem a grandeza de todos os homens...
A paisagem do Homem é tão inédita como a das nuvens que só os aviadores observam e conhecem.
A mulher que faz renda no silêncio tirando do nada a obra prima em que a linha se transforma. O olhar da adolescente à porta da casa perdida no deserto, quantas esperas de sonho, quantas pérolas escondidas, quanta água que nenhum jovem ainda bebeu!...
E por fim... o valor de uma laranja no deserto, quando nada mais há do que a morte e o silêncio!...
Uma laranja de súbito encontrada no deserto é bem o símbolo do milagre da vida simultaneamente tão grandiosa e tão pequena em que o Homem se confina. Uma laranja no deserto, quem terá pensado nisso? Em reparti-la, por vários dias... Matematicamente! Com as mãos da esperança. Como o agarrar-se à vida que se esvai e se ama cada vez mais...
Éxupéry é, entre muitas outras coisas, o escritor do Sáara. Dos grandes silêncios de imagens luminosas. Nele se bebe o silêncio grandiloquente do mundo.
Mas...uma solidão, em que todos cabem, em que se saúda apoteoticamente o encontro com o primeiro oásis, a primeira aldeia, o primeiro rosto humano!
Eduardo Aleixo