sexta-feira, 27 de março de 2009

Convidado do mês : Egito Gonçalves

1.
Inventámo-nos. Somos
eco do mesmo apelo reconhecido,
a mesma busca
dum resgate impossível.
---
A mesma fome nos ergueu
os braços
a um gesto de encontro,
um riso,
um pólen na viagem do vento.
---
E eis que o pássaro inexistente
pousa
concreto e tangível
sobre os nossos ombros.
2
Por algum motivo as lágrimas descem
até à boca.
Mastiga-se o sabor,
entra no sangue o sal,
em vida se transforma, é
sulco que a dor abre, fertiliza,
aberta linha de semeadura onde
poderá surgir um bosque,
uma cidade, uma justiça...
---
É o gosto da dor
que vitaliza, acende o palpitar
no coração que sobe à superfície.
---
Descem até à boca
por algum motivo as lágrimas.
3.
Quando falamos de amor
de que amor
falamos?
---
Quando esperamos realizar
a nossa
esperança
de que esperança nos queremos
portadores? A que verdade
supomos esperançar-nos?
---
Quando falamos da fonte
e a madrugada
sabemos se haverá água
nas manhãs?
---
Agarrados ao fogo das palavras
afogamo-nos
supondo ter a margem
sob os dedos?
( Livro: " O Fósforo na Palha "- de Egito Gonçalves )

7 comentários:

Maria disse...

Há algum tempo não tinhas convidados....
Gosto do Egipto Gonçalves. Obrigada.

Beijo

Paula Raposo disse...

Obrigada por esta partilha maravilhosa!!! Adorei este post. Muitos beijos e bom fim de semana.

Anônimo disse...

Somos tanto mas parece que jamais (?!) saberemos quem somos, buscando quase nem sabemos o quê, e choramos, muitos de nós, pelas encruzilhadas das dúvidas e dos receios, embora também muitos gargalhem nescia ou loucamente, afundando-nos em plúmbeos caixões de implacável tempo, transitoria e aparentemente descansando ou aprazendo-nos em mais ou menos breves estádios etários ou sociais, chorando-nos a íntima e sofredora fonte, não sabemos bem onde nem com que dimensões, e o caminho que não sabemos encontrar não o encontramos, ainda assim, nem escorrentes de lacrimoso sal, por dentro ou por fora de nós. O amor e a esperança, que fertilizam ou amadurecem ou suavizam o viver, também não têm sido, incompreensivelmente por não serem de todos, a chave completa para alcançar a geral felicidade, a alegria de todos, ou a evasão possível, como diria Egito Gonçalves, desta condenação incompreensível e sem fim (?!) a que nascemos e vivemos sujeitos, consumindo-nos em tantas inutilidades e em inexorável tempo, como que sabendo o que devemos fazer para nos corrigirmos mas sem o fazermos ou fazendo quase o contrário. E as palavras pululam, também, para nos salvar, para salvar o mundo, mas sem êxito, tendo já todas sido ditas mas faltando salvar o mundo. Continuemos, porém, embebidos de esperança e fé, senão mais o sem-sentido da vida se sentirá por toda a parte e por muitos mais de nós, e entretanto contemplemos e amemos essa mãe-Natureza, que, embora algo ou muito atónita com o nosso homem-progresso, ainda nos dá sadios e plácidos exemplos de viver.
Um abraço, Eduardo.

Mírtilo

Clotilde S. disse...

Cheguei aqui por acaso,trazida pelos ventos da casa de maio.

Gostei desta casa e deste jardim.

Anônimo disse...

Eduardo

Eu não conhecia este poeta, mas lendo este poema acho que perdi alguma coisa, porque amei simplesmente. É lindo!

"Quando falamos da fonte
e a madrugada
sabemos se haverá água
nas manhãs?"

Obrigada, amigo!

Um beijo

LuNAS. disse...

É tão bonito! E estou como a Maria - já tinha dado conta da lacuna!
beijito e bom fim e semana

Lucília Benvinda disse...

Eduardo,
Boa iniciativa esta de teres convidados, assim vais dando a conhecer a obra de outros poetas.

E a gente vai apreciando estes belos poemas!
Beijinhos,
Lucy