sexta-feira, 28 de novembro de 2008

QUEM GANHOU A CONCHA FOI......

A atribuição da concha de S. Tomé obedeceu aos seguintes critérios, escritos no meu post, de 26 de Novembro, com o título, " ATENÇÂO ":
1. « Quem acertar no seu nome ( do poeta ) receberá um prémio...» 2. A « concha será entregue a quem, em primeiro lugar ( mais cedo no tempo) disser o nome do poeta...»
Assim, não pude tomar em consideração quem indicou mais do que um nome ( foi o caso do blogue, O Cheiro da Ilha, a despeito de ter sido o primeiro a indicar, mas juntamente com muitos outros nomes , o nome de Camões ). Tenho a certeza de que a Maria compreenderá as minhas razões.
Quem indicou o nome de Camões , e só o seu nome, foi um Anónimo. Lamento não poder atribuir-lhe o prémio por se tratar de um Anónimo. Mais do que uma vez, neste blogue, tenho pedido para que as pessoas se identifiquem. E neste caso o meu lamento ainda é maior, porque a análise que fez no seu comentário foi brilhante. Fico à espera que me dê a conhecer o seu nome e desejo do fundo do coração que continue a fazer parte da família do À Beira de Àgua.
O blogue que acabou por preencher os requisitos exigidos ( um só nome, o de Camões, e sua comunicação mais cedo no tempo ,como podem comprovar, acedendo ao post respectivo ) é: - PICO MINHA ILHA. parabéns. Resta-me agradecer a todos o modo entusiástico com que aderiram à ideia, dar-lhes muitos abraços de amizade e de ternura e dizer-lhes que ... há mais conchas para distribuir no futuro.
Quanto ao blogue, Pico minha Ilha, e tendo em vista combinar o modo de entrega da concha, peço-lhe para me contactar através do meu email, que se encontra no meu Perfil. Não tendo o email do blogue vencedor não vejo outra maneira de o contactar.
BOM FIM DE SEMANA PARA TODOS, ATÉ AO DIA 2 DE DEZEMBRO. QUE ME VOY ATÉ RONDA - SEVILHA. Eduardo

Convidado da semana: Luís de Camões

1. Descalça vai para a fonte
Descalça vai para a fonte
Leonor pela verdura;
vai fermosa e não segura.
-
Leva na cabeça o pote,
o testo nas mãos de prata,
cinta de fina escarlata,
sainho de chamalote;
traz a vasquinha de cote,
mais branca que a neve pura;
vai fermosa e não segura.
-
Descobre a touca a garganta,
cabelos de ouro o trançado,
fita de cor de encarnado,
tão linda que o mundo espanta;
chove nela graça tanta
que dá graça à fermosura;
Vai fermosa e não segura.
2. Aquela triste e leda madrugada
Aquela triste e leda madrugada,
cheia toda de mágoa e de piedade,
enquanto houver no mundo saudade
quero que seja sempre celebrada.
Ela só, quando amena e marchetada
saía, dando ao mundo claridade,
viu apartar-se de ûa outra vontade,
que nunca poderá ver-se apartada.
-
Ela só viu as lágrimas em fio,
que de uns e de outros olhos derivadas
se acrescentaram em grande e largo rio.
-
Ela viu as palavras magoadas
que puderam tornar o fogo frio,
e dar descanso às almas condenadas.
3. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
muda-se o ser, muda-se a confiança;
todo o mundo é composto de mudança,
tomando sempre novas qualidades.
-
Continuamente vemos novidades,
diferentes em tudo da esperança;
do mal ficam as mágoas na lembrança,
e do bem ( se algum houver ), as saudades.
-
O tempo cobre o chão de verde manto,
que já coberto foi de neve fria,
e, em mim, converte em choro o doce canto.
-
E, afora este mudar-se cada dia,
outra mudança faz de mor espanto,
que não se muda já como soía.
4. Fala do velho do Restelo - de os "Lusíadas"
( extracto )
Mas um velho, d'aspeito venerando,
Que ficava nas praias, entre a gente,
Postos em nós os olhos, meneando
Três vezes a cabeça, descontente,
A voz pesada um pouco alevantando,
Que nós no mar ouvimos claramente,
Cum saber só d'experiências feito,
Tais palavras tirou do experto peito:
-
" Ó glória de mandar, ó vã cobiça
Desta vaidade, a quem chamamos Fama!
Ó fraudulento gosto, que se atiça
Cûa aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles exp'rimentas!
-
--------------
---------------
Deixas criar às portas o inimigo,
Por ires buscar outro de tão longe,
Por quem se despovoe o Reino Antigo,
Se enfraqueça e se vá deitando a longe;
Buscas o incerto e incógnito perigo
Por que a Fama te exalte e te lisonje
Chamando-te senhor, com larga cópia,
Da Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia!
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5. Amor é um fogo que arde sem se ver
Amor é um fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.
-
É um querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre as gentes;
é nunca contentar-se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.
-
É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.
-
Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo amor?
( Luís de Camões, 1524 ? - 1580 )

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

O silêncio das gaivotas contado pela estrela do mar - continuação (2)

«As gaivotas andam recolhidas - começou ela , após um momento de silêncio. A coisa já dura desde o ano passado, mas o silêncio das gaivotas só aparece com a ordem dada pelas autoridades de despedirem o faroleiro. Ora elas só obedecem ao faroleiro.»
« Tu estás bem?! Com a tua cultura, os teus conhecimentos ... continuas a querer viver nesta poça, neste isolamento? », perguntei.Mas sem resposta.
« As gaivotas nasceram para voar, pescar e serem livres. Agora, querem dar-lhes outras funções! »

À medida que falava, os mexilhões aproximavam-se com respeito e os ouriços deslocavam-se imperceptivelmente na direcção da estrela , que, no seu cantinho, apenas movia a boca no centro do seu corpo . A água na poça era transparente, reflectia o azul do céu e tremia de modo permanente devido aos movimentos dançantes dos filamentos da planta marinha.

« Mas que outra funções»?, perguntei, intrigado.
« É preciso conhecer a história destes bichos, que são livres, e não domesticáveis. Não são bichos fáceis. Nunca foram. Só há coisa de uma centena de anos é que existe paz na costa , e em concreto nesta costa, oeste. São bichos de culturas diferentes. De saberes diferentes. Uma gaivota de Peniche é diferente de uma gaivota de Santa Cruz...»

« Pois sim, mas... falaste em funções , falaste em faroleiro...»
« Falei em faroleiro porque elas só obedecem aos faroleiros. Foram os faroleiros da costa que pacificaram o mundo das gaivotas. Só eles, aliás, o poderiam ter feito, porque receberam o conhecimento das gaivotas como herança dos seus antepassados. E elas sabem. E elas amam os faroleiros, mesmo que com eles discutam. Acabaram as guerras a partir do momento em que lhes foram distribuídas praias e rochedos, isto é, zonas para elas morarem. Onde têm morado e vivido, felizes, até ao dia em que foram chamadas ao faroleiro e este lhes disse ter recebido ordens superiores de que o mundo das gaivotas devia mudar radicalmente...»

« Mas quem manda no faroleiro, e qual o motivo da mudança? », perguntei, confuso.

« Quem manda no faroleiro é o chamado Ministério da Onda , que antes nunca se meteu nestes assuntos do mar, mas que agora vem dizer que com a globalização , não sei que mais, das questões marinhas e dos requisitos da excelência, coisas assim... as regras passaram a ser universais e a abranger drasticamente o mundo das gaivotas...
A bicharada na poça dizia que sim com as cabeças, os mexilhões abriam e fechavam as suas conchas de cor escarlate, os ouriços tinham os espinhos mais eriçados, as lapas descolaram levemente as suas conchas , mostrando os olhos aquiescentes, e os peixinhos navegavam parados, com a atenção suspensa...

« Desculpa lá, mas qual o motivo invocado pelo faroleiro para não cumprir a ordem?
« O faroleiro não cumpre essa ordem, e não cumprindo, pode ser afastado », esclareceu a estrela.
« Mas que ordem é essa e a que funções te referes? E qual o motivo por que as gaivotas estão escondidas e não aparecem nas praias? »
Aqui ela fez silêncio. O silêncio dela foi acompanhado por ligeira crispação dos corpos dos bichos em redor e reparei na paragem súbita da dança dos filamentos da planta marinha. Senti que o assunto era delicado e que a estrela precisava de medir as palavras. Seguindo o seu olhar, vi, no cimo das arribas, duas gaivotas adultas, que nos olhavam, denunciando que estavam ali desde o princípio atentas à nossa conversa.
- É melhor continuarmos a conversa noutro dia... - sibilou a estrela, olhando-me com aquele ar conspirativo, que herdou dos tempos antigos, quando militou no MRPP...
- Mas..
-É por causa da maré. - esclareceu - Está a subir. Podes ficar isolado e não teres tempo para saltares dos rochedos para o areal
- Ate manhã - despedi-me eu.
- Até.... - acenou-me ela, levantando a pontinha de uma das suas hastes de estrela, que logo se recolheu, para se proteger das primeiras águas trazidas por uma onda da enchente.
NOTA: A continuação, ou não, desta estória, depende da natureza, confidencial ou não , do que tenha para ouvir da parte da estrela do mar...)
Eduardo Aleixo

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

ATENÇÃO

Na sexa-feira, dia 28, este blogue vai receber, como convidado, um poeta.
Quem acertar no seu nome receberá um prémio, que darei com toda a alegria. O prémio é uma concha, rara, de S. Tomé e Príncipe. Podem vê-la no lado direito do blogue. É um poeta muito grande de Portugal. Muito grande, repito. A concha será entregue a quem, em primeiro lugar ( mais cedo no tempo ), disser o nome do poeta, em comentário a este post, até ao último segundo desta quinra-feira, dia 27 de Novembro. Boa sorte. Já está a contar. Eduardo Aleixo

O mistério do silêncio das gaivotas contado pela estrela do mar

Não é normal que não se vejam as gaivotas. Também não é normal , com uma vazante assim, que não se vejam homens, de calças arregaçadas, a apanharem mexilhões, ou polvos, ou lapas, no meio dos rochedos. Também é estranho que com um mar tão chão nem um pescador desportivo se veja. Está um lindo dia de sol de Novembro. Como sempre faço, aos fins de semana, passeio-me junto do mar, e perscruto as diversas tonalidades do azul e do verde ao longo de uma estrada que tem como alvo as Berlengas .
Hoje, as ondas deslizam suavemente e estendem os braços de espuma, que se espreguiçam languidamente na areia castanha da praia. Nem um barco; e as poucas pessoas na praia expõem os corpos ao belo sol da manhã.
As gaivotas não me saem do pensamento. Estou habituado a vê-las, em manhãs assim, reunidas em aglomerados, como se fossem famílias. Se ali estivessem, afastar-se-iam à medida que me fosse aproximando, em voos curtos, com excepção das mais jovens, que, essas, ou iniciam grandes e rápidas marchas na areia molhada, junto da rebentação, ou então ensaiam voos rasantes sobre as cristas das ondas, deixando-me a ideia de que andam a treinar as asas ainda jovens. Acho estranho que não estejam na praia quase deserta, onde costumo vê-las felizes e contentes. Ponho-me a pensar neste mistério... E foi então que me lembrei da estrela do mar!..
Só ela me pode explicar o mistério! Só ela sabe da vida de todos os bichos que vivem na costa, quer na terra quer no mar. Já há uma certo tempo que não a visito!...
Como tem mau feitio, fingirá, a princípio, que não me vê chegar, que não tem qualquer interesse na minha visita, mas, no fundo, não é assim: são mais as coisas que nos unem do que aquelas que nos separam, ou, se não são mais, são deveras essenciais, embora esta conclusão nos tenha chegado, presumo eu, a cada um no espaço próprio da sua intimidade, muito tempo depois das tempestades, que trouxeram mágoas , lavadas no entanto pela sabedoria das marés. Foi no tempo das mágoas que ela se retirou para a poça dos rochedos , descrente do amor, poça onde vive e pode ser vista na vazante, juntamente com mexilhões, lapas, ouriços do mar,búzios e plantas marinhas de filamentos ondulantes, e pequenos peixes, que perderam o comboio da vazante e ficaram, por distracção, sem água, para irem com as carruagens do mar.

Depois de algum tempo de silêncio, ela ergueu os seus olhos castanhos para mim e disse-me:

- Já sei ao que vens: queres saber o que se passa com as gaivotas...
( talvez possa ter continuação... )
Eduardo Aleixo

terça-feira, 25 de novembro de 2008

Poema tirado de uma notícia de jornal

João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro
da Babilónia num barracão sem número.
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.
( Manuel Bandeira )

domingo, 23 de novembro de 2008

ECO

Hoje, perguntando onde estás, e o
que fazes, ouço as palavras tristes
da solidão que me responde, sem
nada me dizer, ao dizer-me tudo.
-
O que fazes e onde estás, pergunto
ao silêncio que me deixaste; e ouço
em mim a resposta, num eco que
vem de ti, perguntando por mim.
-
E neste espelho que entre mim e ti
a ausência constrói, outro espelho
reflecte o vazio da sua imagem, até
-
esse infinito em que a minha pergunta
te responde, para que me devolvas
o eco em que as nossas vozes se juntam.
( Nuno Júdice, in " O Breve Sentimento do Eterno " )

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Convidado da semana: Mário Cesariny

1. falta por aqui uma grande razão
uma razão que não seja só uma palavra
ou um coração
ou um meneio de cabeças após o regozijo
ou um risco na mão
ou um cão
ou um braço para a história
da imaginação
-
podemos pois está claro
transferir-nos
imaginar durante um quarto de hora
os séculos que virão
- os séculos um
e dois
da colonização -
depois
depois é este cair na madrugada ardente
na madrugada de constantemente
sem sol
e sem arpão
-
faltas tu faltas tu
falta que te completem
ou destruam
não da maneira rilkeana vigilante mortal solícita e obrigada
- não, de nenhuma maneira resultante!
nem mesmo o amor
não é o amor que falta
-
falta uma grande realmente razão
apenas entrevista durante as negociações
oclusa na operação do fuzilamento cantante
rodoviária na chama dos esforços hercúleos
morta no corpo a corpo do ismo contra ismo
-
falta uma flor
mas antes de arrancada
-
falta, ó Lautréamont, não só que todo o figo coma o seu burro
mas que todos os burros se comam a si mesmos
que todos os amores palavras propensões sistemas de palavras e
de propensões
se comam a si mesmos
muitas horas por dia até de manhã cedo
até que só reste o a o b e o c das coisas
para o espanto dos parvos
que aliás não estão a mais
-
isso eu o espero
e o faço
junto à imagem da
criança morta
depois que Pablo Picasso devorou o seu figo
sobre o cadáver dela
e longas filas de bandeiras esperam
devorar Picasso
que é perto da criança, ao lado da boca minha
2. no país no país no país onde os homens
são só até ao joelho
e o joelho que bom é só até à ilharga
conto os meus dias tangerinas brancas
e vejo a noite Cadillac obsceno
a rodar os meus dias tangerinas brancas
para um passeio na estrada Cadillac obsceno
-
e no país no país e no país país
onde as lindas lindas raparigas são só até ao pescoço
e o pescoço que bom é só até ao artelho
ao passo que o artelho, de proporções mais nobres,
chega atingir o cérebro e as flores da cabeça,
recordo os meus amores liames indestrutíveis
e vejo uma panóplia cidadã do mundo
a dormir nos meus braços liames imdestrutíveis
para que eu escreva com ela, só até à ilharga,
a grande história do amor só até ao pescoço
-
e no país no país que engraçado no país
onde o poeta o poeta é só até à plume
e a plume que bom é só até ao fantasma
ao passo que o fantasma - ora aí está -
não é outro senão a divina criança ( prometida )
uso os meus olhos grandes bons e abertos
e vejo a noite ( on ne passe pas )
dia que grandeza de alma. Honestos porque.
Calafetagem por motivo de obras.
É relativamente queda de água
e já agora hã muito não é doutra maneira
no país onde os homens são só até ao joelho
e o joelho que bom está tão barato

3. poema podendo servir de posfácio

ruas onde o perigo é evidente

braços verdes de práticas ocultas

cadáveres à tona de água

girassóis

e um corpo

um corpo para cortar as lâmpadas do dia

um corpo para descer uma paisagem de aves

para ir de manhã cedo e votar muito tarde

rodeado de anões e de campos de lilases

um corpo para cobrir a tua ausência

como uma colcha

um talher

um perfume

-

isto ou o seu contrário, mas de certa meneira hiante

e com muita gente à volta a ver o que é

isto ou uma população de sessenta mil almas devorando almofadas

escarlates a caminho do mar

e que chegam, ao crepúsculo,

encostadas aos submarinos

-

isto ou um torso desalojado de um verso

e cuja morte é o orgulho de todos

ó pálida cidade construída

como uma febre entre dois patamares!

vamos distribuir ao domicílio

terra para encher candelabros

leitos de fumo para amantes erectos

tabuinhas com palavras interditas

- uma mulher para este que está quase a perder o gosto à vida -

tome lá -

dois netos para essa velha aí no fim da fila - não temos mais -

saquear o museu dar um diadema ao mundo e depois obrigar a

repor no mesmo sítiio

e para ti e para mim, assentes num espaço útil,

veneno para entornar nos olhos do gigante

isto ou um rosto solitário como barco em demanda de

vento calmo para a noite

se nós somos areia que se filtre

a um vento débil entre arbustos pintados

se um propósito deve atingir as suas margens como as correntes

da terra náufragos e tempestade

se o homem das pensões e das hospedarias levanta a sua fronte

da cratera molhada

se na rua o sol brilha como nunca

se por um minuto

vale a pena

esperar

isto ou a alegria igual à simples forma de um pulso

aceso entre a folhagem das mais altas lâmpadas

isto ou a alegria dita o avião de cartas

entrada pela janela saída pelo telhado

ah mas então a pirâmide diz coisas?

então a pirâmide é o segredo de cada um com o mundo?

sim meu amor a pirâmide existe

a pirâmide diz muitíssimas coisas

a pirâmide é a arte de bailar em silêncio

-

e em todo o caso

-

há praças onde esculpir um lírio

zonas subtis de propagação do azul

gestos sem dono barcos sob as flores

uma canção para ouvir-te chegar

( Cesariny, in " UMA GRANDE RAZÃO - Os poemas maiores " )

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

OUTONO

o.
Outono.
( A palavra é cansada...)
Tudo a cair de sono,
Como se a vida fosse assim, parada!
-
Nem o verde inquieto duma folha!
O próprio sol, sem força e sem altura,
Olha
Dum céu sem luz e levedura.
-
Fria,
A cor sem nome duma vinha morta
Vem carregada de melancolia
Bater-me à porta.
Canção da pura humildade
Fio de água,
Vou por tojos e urgueiras
A cantar esta mágoa,
Sabendo que há mais água e mais maneiras.
-
Vou sem nenhuma inveja.
Apenas peço ao ceu
Que, espelhando-se em mim, me veja,
Porque afinal sou eu.
( Miguel Torga, in DIÁRIO I )

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

YouTube - ANSIEDAD

É que dá-me...,mais do que vontade de escrever,
saudades desses tempos, e ficar, assim, sem nada fazer...
Eduardo Aleixo

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Crise leva famílias a retirarem idosos dos lares

" O Presidente da União de Misericórdias Portuguesas ( UMP ), Manuel Lemos, alertou ontem para o facto de já haver " famílias que estão a retirar idosos dos lares e levá-los para casa para tirar proveito da reforma que eles recebem".
Nos últimos quatro meses, segundo Manuel Lemos, o número de casos de idosos que foram retirados das instituições levou a que várias misericórdias comunicassem o facto à entidade que as coordena a nível nacional. " Numa época de crise, a reforma de um idoso é mais uma fonte de rendimento para as famílias".
Manuel de Lemos precisou que se trata " sobretudo de idosos que se encontravam em instituições localizadas na periferia urbana das cidades do litoral". Sem avançar com números ou as localidades onde têm acontecido mais abandonos, o responsável pela UMP avisa que " se a tendência se mantiver nos próximos meses, o Governo terá que tomar medidas".
Sem controlo
A preocupação das misericórdias, que continuam a ter listas de espera para a admissão de idosos, prende-se com o tipo de tratamento que eles estão a ter no seio da família.
" Se estavam institucionalizados, é porque familiares, médicos e assistentes sociais acharam que era a melhor solução. Em casa de familiares, não há qualquer controlo sobre a forma como estão a ser cuidados. "
A legislação em vigor prevê que as instituições de acolhimento de idosos possam reter até 85 por cento do valor da reforma da pessoa acolhida. A esta verba a segurança social acrescenta mais 388,51 euros por cada utente.
" Todas as informações que nos chegam referem que os idosos só regressam à famílias não porque houvesse mais condições ou mais disponibilidade para tratar deles, mas sobretudo pela questão financeira", afirmou Lemos. "
( Em o jornal, Público, dia 18/11/2008 )

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

ramalhete das rosas

A febre das palavras prontas para o edifício das pegadas quando o mar já foi vencido... A alegria das palavras lidas por crianças, esses animais respeitáveis com radares infinitos no corpo para o corpo infinito do mundo... A vitória das palavras, ceifadas, filtradas, construídas, modeladas, no altar da sublime solidão, regaço procurado, onde se compõe o ramalhete das rosas mais frescas das mais puras madrugadas. Eduardo Aleixo

domingo, 16 de novembro de 2008

Astronomia

Vou buscar uma das estrelas que caiu
do céu, esta noite. Ficou presa a um
ramo de árvore, mas só ela brilha,
único fruto luminoso do verão passado.
---
Ponho-a num frasco, para não se
oxidar; e vejo-a apagar-se, contra
o vidro, à medida que o dia se
aproxima, e o mundo desperta da noite.
---
Não se pode guardar uma estrela. O
seu lugar é no meio de constelações
e nuvens, onde o sonho a protege.
---
Por isso, tirei a estrela do frasco e
meti-a no poema, onde voltou a brilhar,
no meio de palavras, de versos, de imagens.
( Nuno Júdice, in " O Breve Sentimento do Eterno " )

sábado, 15 de novembro de 2008

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Convidado da semana: Jorge de Sena

1. Diáfana
No que existe e não existe,
no que é alegre e é triste,
em tudo aquilo que passa
há um perfume de graça...
---
E haverá na realidade
essa vaga idealidade?
Ou somos nós que a sentimos
e, por não vermos, a vimos?
---
Que importa que não exista,
que nos engane ou não a vista?
Ou que exista e seja assim?
---
Se lhe basta irradiar
para nos fazer sonhar
outro fim além do fim...
( 26/5/38, Caderno peto, pág. 4. Obras- Vol. 2.º, pág. 42 )
2. Imortalidade
O meu tempo começou quando nasci mas não há-de acabar quando eu morrer.
Eu não sei terminar nada,
gosto de não saber
e tudo fica assim, no ar, indefinido...
--
A minha morte talvez seja incompleta.
---
Morrer é ocupar no espaço
uma posição que não depende da vontade.
Mas quem a ocupa é o corpo.
---
O corpo deixa então
de existir no tempo.
---
Só o espaço ficará connosco?
Que direitos tem o espaço a mais do tempo?
Do nós que na verdade somos
não haverá um resto acorrentado ao tempo?
---
Se o espaço sem tempo não é vida,
talvez o tempo sem espaço o possa ser.
---
E eu fique assim
vivendo sem matéria...
---
E o meu tempo,
sendo então eu mesmo,
não há-de acabar quando eu morrer.
(25/9/38, Obras, Vol. 7.º, págs. 5-6 )
3. Casos
De ti
já me esqueci.
Não recordo com a mínima saudade
qualquer pormenor,
qualquer intimidade, do amor
que nos distraíu alguns momentos.
---
Já me esqueci
do espírito desse mesmo amor
e tudo o que existiu
ou nós imaginámos
não consegue interessar-me
como coisa própria.
---
Por isso,
se quiseres voltar,
compo parece,
é preciso que o passado não te importe,
é preciso que tudo seja novo e nós sejamos outros.
---
Assim ao menos
tempo depois
podemos afirmar de envolta com um um sorriso
que dum caso só fizemos dois...
( 30/10/38, Obras - Vol. 7º, págs. 59-60 )

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Ventos

O poeta que apascenta os ventos dá a
cada um nome de mulher: ao
vento norte chama-lhe perpétua, a flor
que fica e se prolonga no ouvido;
---
o vento sul é o malmequer, que
cada um tem de escolher, e é de
todos sem ser de nenhum quando
entra por um ouvido e sai pelo outro;
---
o vento oeste é a rosa, que
brilha muito e dura pouco, e quando
morre ainda pica; e o vento leste
---
é a violeta, que se deita com o
poeta e se levanta com o sueste,
pintando o dia com cores de borboleta.
( Nuno Júdice, in " O breve Sentimento do Eterno "

BUCÓLICA

A vida é feita de nadas:
De grandes serras paradas
À espera de movimento;
De searas onduladas
Pelo vento;
---
De casas de moradia
Caídas e com sinais
De ninhos que outrora havia
Nos beirais;
---
De poeira;
De sombra de uma figueira;
De ver esta maravilha:
Meu Pai a erguer uma videira
Como uma mãe que faz a trança à filha.
( Miguel Torga, " Diário I " )

terça-feira, 11 de novembro de 2008

A jaca (fruto) na jaqueira (árvore)

A Roça das Flores tropicais...

Caminho do Sul

Nota de Rodapé para as fotos...

Os momentos que nos salvam e que nos permitem recobrar o fôlego... Porque os paraísos também não são perfeitos - pelo menos cá na nossa Terra! Espero que gostem... Bjs Rita

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Mértola, nove de Novembro.

Guadiana: a manta amarela do outono cobrindo completamente os choupos à beira das águas...
Águas calmas, paradas, já não as mesmas águas, puras, movimentadas, da minha infância, quando o rio respirava saúde e as águas eram renovadas todos os anos com as cheias que tapavam os choupos e trepavam as encostas íngremes...
Jã não existindo as pessoas... permanecem os lugares, que falam.

Mértola, 9 de Novembro de 2008

A MINHA HOMENAGEM

Calou-se ontem uma voz que lutou pela libertação do ser humano .
A minha homenagem. ----

domingo, 9 de novembro de 2008

Poeminhas

Ó colinas Ó pálpebras
Ó intimas paisagens
despertadas
-----
Diante do teu ventre
como não dizer « Sempre »
novamente
-----
Uma fresta Uma réstea
de luz que se diverte
a sorver-te
-----
Cintilação de luas
assim que te desnudas
às escuras
-----
Só tu e uma serpente
me conhecem por dentro
desde sempre
-----
Não há sumo de fruta
que na polpa da nuca
não ressurja
-----
Ruge Reprende Arrasa
Desde que sempre o faças
com as asas
-----
Evadidos da morte
dois unidos archotes
a galope
-----
Quantas mãos Quantos dedos
para que em seda cedam
as paredes
-----
A palavra e a pele
em uníssono pedem
que lhes pegue
( David Mourão Ferreira - in " entre a sombra e o corpo " )

sábado, 8 de novembro de 2008

Obama: somos todos americanos

"Aqueles que ganharam a vida através da diabolização de Bush já têm um novo ganha-pão. a beatificação de Obama. Passei os últimos anos a dizer que " Bush não é assim tão mau" . Calculo que vou passar os próximos anos a dizer que " Obama não é assim tão bom". Mas esta não é a hora para uma análise política. Esta é a hora de celebrar a minha América. Dado que sou demasiado céptico para acreditar em seitas abraâmicas, a América é o meu culto pagão. E os meus deuses são Hamilton e Lincoln.
Alexander Hamilton é o meu pai-fundador preferido. Este homem era um bastardo que tinha como mãe uma escultural taberneira francesa. Mas, mesmo assim, Hamilton foi uma figura central nos primeiros anos da República americana. Além disso, Hamilton sempre contestou a escravatura. Um século mais tarde, Abraham Lincoln reactualizou o legado de Hamilton. Lincoln, tal como Hamilton ( e Obama ), tinha origens humildes. Lincoln, tal como Obama, subiu na vida através do talento revelado no Direito e nos discursos políticos. E Lincoln formou o Partido republicano para combater a escravatura defendida pelo Partido democrático. Aliás, no seu discurso de vitória, Obama não se esqueceu da dívida histórica que os negros têm para com os republicanos. Enfim, estejam onde estiverem, Hamilton e Lincoln estão felizes com a vitória de Obama. É que Obama representa essa inquebrantável força moral da América. Uma força moral que se situa a montante de qualquer consideração política. Uma força que advém da bomba atómica da Ética: um filho de uma taberneira pode ser alguém na América. Na Europa, Obama, Hamilton e Lincoln seriam taxistas ou taberneiros. É por isso que amo a América.
A força da América não está no porta-aviões bizantino que eu adorava nos tempos em que queria ser o Tom Cruise. A força da América não está na sua economia liberal que permitiu aos meus pais terem uma casa que é só deles e que me permitiu viver nos 30 anos mais prósperos da História. A força da América não está nos filmes que me ensinaram a falar inglês e que me lançaram para um caminho que não deveria ser o meu; filmes que me transformaram num " acaso sociológico ", como diria o grande Fernando Lopes. A força da América vem de outro sítio. A força da América é aquele enorme coração que consegue cravar lágrimas deste lado do Atlântico às quatro da manhã. A força da América é aquela esperança que dá vontade de pegar no barco de borracha e remar até Nova Iorque. O encanto da América está em ver aquele menino magrinho, sem sangue azul e com pai queniano, a transformar-se no presidente dos EUA. Como não sentir a justiça redentora deste momento? O meu cepticismo impede-me de ser um optimista lírico, mas lambem me impede de ser um pessimista apocalíptico. Reconheço a existência de lúciferes e demais arcanjos mal-dispostos, mas também acredito nos " better angels of our nature ". Na terça-feira, os anjos de Lincoln apareceram nos ombros de Obama.
Certa vez, Thomas Jefferson afirmou que cada homem tem duas pátrias:
a sua e a França. Jefferson, como sempre, estava errado. Cada homem tem duas pátrias: a sua e a América. Fui americano nos últimos oito anos. Continuarei a sê-lo nos próximos anos. "
( Artigo de Henrique Raposo, in Expresso, de 8 de Novembro de 2008 )

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

BOM FIM DE SEMANA PARA TODOS

Clica aqui:: Antonio Vivaldi "Autumn" Foi no Outono que nasceste? É o Outono que sentes? Por isso ficas triste, mas disponível, para soletrar as palavras do vento. E quando as primeiras chuvas cairem... o pequeno almoço que tomas vem pleno de saudade do sol que já morreu ... ou da infância que procuras? Eduardo Aleixo

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Convidado da semana: José Saramago

" O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever. Às quatro da madrugada, quando a promessa de um novo dia ainda vinha em terras de França, levantava-se da enxerga e saía para o campo, levando ao pasto a meia dúzia de porcos de cuja fertilidade se alimentavam ele e a mulher. Viviam desta escassez os meus avós maternos, da pequena criação de porcos que, depois do desmame, eram vendidos aos vizinhos da aldeia. Azinhaga de seu nome, na província do Ribatejo. Chamavam-se Jerónimo Melrinho e Josefa Caixinha esses avós, e eram analfabetos um e outro. No Inverno, quando o frio da noite apertava ao ponto de a água dos cântaros gelar dentro de casa, iam buscar às pocilgas os bácoros mais débeis e levavam-nos para a sua cama. Debaixo das mantas grosseiras, o calor dos humanos livrava os animaizinhos do enregelamento e salvava-os de uma morte certa. Ainda que fossem gente de bom carácter, não era por primores de alma compassiva que os dois velhos assim procediam: o que os preocupava, sem sentimentalismos nem retóricas, era proteger o seu ganha-pão, com a naturalidade de quem,para manter a vida, não aprendeu a pensar mais do que o indispensável. Ajudei muitas vezes este meu avô Jerónimo nas suas andanças de pastor, cavei muitas vezes a terra do quintal anexo à casa e cortei lenha para o lume, muitas vezes, dando voltas e voltas à grande roda de ferro que accionava a bomba, fiz subir a água do poço comunitário e a transportei ao ombro, muitas vezes, às escondidas dos guardas das searas, fui com a minha avó, também pela madrugada, munidos de ancinho, panal e corda, a recolher nos restolhos a palha solta que depois haveria de servir para a cama do gado. E algumas vezes, em noites quentes de Verão, depois da ceia, meu avô me disse: « José, hoje vamos dormir os dois debaixo da figueira. » Havia outras duas figueiras, mas aquela, certamente por ser a maior, por ser a mais antiga, por ser a de sempre, era, para todas as pessoas da casa, a figueira. Mais ou menos por antonomásia, palavra erudita que só muitos anos depois viria a conhecer e a saber o que significava...

No meio da paz nocturna, entre os ramos altos da árvore, uma estrela aparecia-me, e depois, lentamente, escondia-se por trás de uma folha, e, olhando eu noutra direcção, tal como um rio correndo em silêncio pelo céu côncavo, surgia a claridade opalescente da Via Láctea, o Caminho de Santiago, como ainda lhe chamávamos na aldeia. Enquanto o sono não chegava, a noite povoava-se com as histórias e os casos que o meu avô ia contando: lendas, aparições, assombros, episódios singulares, mortes antigas, zaragatas de pau e pedra, palavras de antepassados, um incansável rumor de memórias que me mantinha desperto, ao mesmo tempo que suavemente me acalentava. Nunca pude saber se ele se calava quando se apercebia que eu tinha adormecido, ou se continuava a falar para não deixar em meio a resposta à pergunta que invariavelmente lhe fazia nas pausas mais demoradas que ele calculadamente metia no relato: « E depois? »Talvez repetisse as histórias para si próprio, quer fosse para não as esquecer quer fosse para as enriquecer com peripécias novas. Naquela idade minha e naquele tempo de nós todos, nem será preciso dizer que eu imaginava que o meu avô Jerónimo era senhor de toda a ciência do mundo. Quando, à primeira luz da manhã, o canto dos pássaros me despertava, ele já não estava ali, tinha saído para o campo com os seus animais, deixando-me a dormir. Então levantava-me, dobrava a manta e, descalço ( na aldeia andei sempre descalço até aos 14 anos ), ainda com palhas agarradas ao cabelo, passava da parte cultivada do quintal para a outra, onde se encontravam as pocilgas, ao lado da casa. Minha avó, já a pé antes do meu avô, punha-me na frente uma grande tigela de café com pedaços de pão e perguntava-me se tinha dormido bem. Se eu lhe contava algum mau sonho nascido das histórias do avô, ela sempre me tranquilizava: « Não faças caso, em sonhos não há firmeza». Pensava então que a minha avó , embora fosse também uma mulher muito sábia, não alcançava as alturas do meu avô, esse que, deitado debaixo da figueira, tendo ao lado o neto José, era capaz de pôr o universo em movimento apenas com duas palavras. Foi só muitos anos depois, quando o meu avô já se tinha ido deste mundo e eu era um homem feito, que vim a compreender que a avó, afinal, também acreditava em sonhos. Outra coisa não poderia significar que, estando ela sentada, uma noite, à porta da sua pobre casa, onde então vivia sozinha, a olhar as estrelas maiores e menores por cima da sua cabeça, tivesse dito estas palavras: « O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer». Não disse medo de morrer, disse pena de morrer, como se a vida de pesado e contínuo trabalho que tinha sido a sua estivesse, naquele momento quase final, a receber a graça de uma suprema e derradeira despedida, a consolação da beleza revelada. Estava sentada à porta de uma casa como não creio que tenha havido alguma outra no mundo porque nela viveu gente capaz de dormir com porcos como se fossem os seus próprios filhos, gente que tinha pena de ir-se da vida só porque o mundo era bonito, gente, e este foi o meu avô Jerónimo, pastor e contador de histórias, que, ao pressentir que a morte o vinha buscar, foi despedir-se das árvores do seu quintal, uma por uma, abraçando-se a elas e chorando porque sabia que não as tornaria a ver.

Muitos anos depois, escrevendo pela primeira vez sobre este meu avô Jerónimo e esta minha avó Josefa ( faltou-me dizer que ela tinha sido, no dizer de quantos a conheceram quando rapariga, de uma formosura invulgar ), tive consciência de que estava a transformar as pessoas comuns que elas haviam sido em personagens literárias e que essa era, provavelmente, a maneira de não os esquecer, desenhando e tornando a desenhar os seus rostos com o lápis sempre cambiante da recordação, colorindo e iluminando a monotonia de um quotidiano baço e sem horizontes, como quem vai recriando, por cima do mapa instável da memória, a irrealidade sobrenatural do país em que decidiu passar a viver. A mesma atitude de espírito que, depois de haver evocado a fascinante e enigmática figura de um certo bisavô berbere, me levaria a descrever mais ou menos nestes termos um velho retrato ( hoje já com quase oitenta anos ) onde os meus pais aparecem: « Estão os dois de pé, belos e jovens, de frente para o fotógrafo, mostrando no rosto uma expressão de solene gravidade, que é talvez temor diante da câmara, no instante em que a objectiva vai fixar, de um e do outro, a imagem que nunca mais tornarão a ter, porque o dia seguinte será implacavelmente outro dia ... Minha mãe apoia o cotovelo direito numa alta coluna e segura na mão esquerda, caída ao longo do corpo, uma flor. Meu pai passa o braço por trás das costas de minha mãe e a sua mão calosa aparece sobre o ombro dela como uma asa. Ambos pisam acanhados um tapete de ramagens. A tela que serve de fundo postiço ao retrato mostra umas difusas e incongruentes arquitecturas neoclássicas.» E terminava: « Um dia tinha de chegar em que contaria essas coisas. Nada disto tem importância, a não ser para mim. Um avô berbere, vindo do Norte de África, um outro avô pastor de porcos,uma avó maravilhosamente bela, uns pais graves e formosos, uma flor num retrato - que outra genealogia pode importar-me? a que melhor árvore me encostaria? » "

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( Extracto do discurso proferido pelo autor, a 7 de Dezembro de 1998, na Academia Sueca, que, em 8 de Outubro , anunciou a decisão de atribuir o Prémio Nobel da Literatura, pela primeira vez, a um escritor de língua portuguesa. Chama-se, como é sabido, José Saramago. O texto completo consta do livro intitulado " Discursos de Estocolmo - 7 e 10 de Dezembro de 1998", uma edição da Editorial Caminho, de distribuição gratuita, homenagem ao escritor no 10º aniversário do evento. )

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Dois poemas de Manuel da Fonseca

1. Aldeia
Nove casas,
duas ruas,
ao meio das ruas
um largo,
ao meio do largo
um poço de água fria.
Tudo isto tão parado
e o céu tão baixo
que quando alguém grita para longe
um nome familiar
se assustam pombos bravos
e acordam ecos no descampado.
2. Canção de maltês
Bati à porta do monte
porque sou um deserdado.
E chovia nessa noite
como se o ceu fosse um mar
entornando-se na terra.
- Quem abre a porta a desoras
morando num descampado?
E continha o rafeiro que ladrava,
na ponta do meu cajado.
Mas veio abri-la o lavrador
com a espingarda na mão,
e pôs um olhar altivo
tão no fundo dos meus olhos
que as mimhas primeiras falas
foram assim naturais:
- guarde a espingarda, senhor,
sou um homenm sem trabalho.
Fui secar-me à lareira.
E a filha do lavrador,
que era uma moça perfeita,
ficou a olhar de gosto
a minha manta rasgada
e o meu fato de maltês.
E com licença do pai,
estendeu-me um canto de pão
com azeitonas maduras.
Não aceitei como esmola;
antes roubar que pedir;
paguei com a melhor história
da minha vida sem rumo.
Foi uma paga de rei.
Prá filha do lavrador
tinha muito mais valia
a história que lhe contei
que o trigo do seu celeiro,
pois estava a olhar de gosto
a minha manta rasgada.
E quando o fogo na lareira
ia aos poucos esmorecendo
agradeci como é de uso;
despedi-me até mais ver
e fui dormir pró palheiro
que é palácio de maltês.
Despedi-me até mais ver
que a gente da minha raça
mal o Sol tenta nascer
ergue-se e parte pelo mundo
sem se lembrar de ninguém.
Assim me deitei ao canto
a esperar pela manhã.
( Manuel da Fonseca, in Poemas Completos )

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Barack Obama

Tens o meu voto.
A minha esperança.
Vou-me deitar tarde esta noite : uma nova estrela foi enviada.
É assim o curso da História, com os seus saltos.
Viva.
Eduardo

Que as palavras não imitem...

Que as palavras não imitem
as folhas amarelas do outono
caindo no regaço das meninas.
Que as palavras não sejam amarelas
nem de cor nenhuma, apenas palavras
com sangue e pensamento.
Que as palavras nem sejam palavras,
mas sóis despertando as manhãs
em todos os peitos do mundo.
Que as palavras também sejam punhais
sempre prontos a sangrar
a verdade, a beleza , o amor,
a bondade e a justiça para além das palavras!...
Eduardo Aleixo