quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Convidado da semana: José Saramago

" O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever. Às quatro da madrugada, quando a promessa de um novo dia ainda vinha em terras de França, levantava-se da enxerga e saía para o campo, levando ao pasto a meia dúzia de porcos de cuja fertilidade se alimentavam ele e a mulher. Viviam desta escassez os meus avós maternos, da pequena criação de porcos que, depois do desmame, eram vendidos aos vizinhos da aldeia. Azinhaga de seu nome, na província do Ribatejo. Chamavam-se Jerónimo Melrinho e Josefa Caixinha esses avós, e eram analfabetos um e outro. No Inverno, quando o frio da noite apertava ao ponto de a água dos cântaros gelar dentro de casa, iam buscar às pocilgas os bácoros mais débeis e levavam-nos para a sua cama. Debaixo das mantas grosseiras, o calor dos humanos livrava os animaizinhos do enregelamento e salvava-os de uma morte certa. Ainda que fossem gente de bom carácter, não era por primores de alma compassiva que os dois velhos assim procediam: o que os preocupava, sem sentimentalismos nem retóricas, era proteger o seu ganha-pão, com a naturalidade de quem,para manter a vida, não aprendeu a pensar mais do que o indispensável. Ajudei muitas vezes este meu avô Jerónimo nas suas andanças de pastor, cavei muitas vezes a terra do quintal anexo à casa e cortei lenha para o lume, muitas vezes, dando voltas e voltas à grande roda de ferro que accionava a bomba, fiz subir a água do poço comunitário e a transportei ao ombro, muitas vezes, às escondidas dos guardas das searas, fui com a minha avó, também pela madrugada, munidos de ancinho, panal e corda, a recolher nos restolhos a palha solta que depois haveria de servir para a cama do gado. E algumas vezes, em noites quentes de Verão, depois da ceia, meu avô me disse: « José, hoje vamos dormir os dois debaixo da figueira. » Havia outras duas figueiras, mas aquela, certamente por ser a maior, por ser a mais antiga, por ser a de sempre, era, para todas as pessoas da casa, a figueira. Mais ou menos por antonomásia, palavra erudita que só muitos anos depois viria a conhecer e a saber o que significava...

No meio da paz nocturna, entre os ramos altos da árvore, uma estrela aparecia-me, e depois, lentamente, escondia-se por trás de uma folha, e, olhando eu noutra direcção, tal como um rio correndo em silêncio pelo céu côncavo, surgia a claridade opalescente da Via Láctea, o Caminho de Santiago, como ainda lhe chamávamos na aldeia. Enquanto o sono não chegava, a noite povoava-se com as histórias e os casos que o meu avô ia contando: lendas, aparições, assombros, episódios singulares, mortes antigas, zaragatas de pau e pedra, palavras de antepassados, um incansável rumor de memórias que me mantinha desperto, ao mesmo tempo que suavemente me acalentava. Nunca pude saber se ele se calava quando se apercebia que eu tinha adormecido, ou se continuava a falar para não deixar em meio a resposta à pergunta que invariavelmente lhe fazia nas pausas mais demoradas que ele calculadamente metia no relato: « E depois? »Talvez repetisse as histórias para si próprio, quer fosse para não as esquecer quer fosse para as enriquecer com peripécias novas. Naquela idade minha e naquele tempo de nós todos, nem será preciso dizer que eu imaginava que o meu avô Jerónimo era senhor de toda a ciência do mundo. Quando, à primeira luz da manhã, o canto dos pássaros me despertava, ele já não estava ali, tinha saído para o campo com os seus animais, deixando-me a dormir. Então levantava-me, dobrava a manta e, descalço ( na aldeia andei sempre descalço até aos 14 anos ), ainda com palhas agarradas ao cabelo, passava da parte cultivada do quintal para a outra, onde se encontravam as pocilgas, ao lado da casa. Minha avó, já a pé antes do meu avô, punha-me na frente uma grande tigela de café com pedaços de pão e perguntava-me se tinha dormido bem. Se eu lhe contava algum mau sonho nascido das histórias do avô, ela sempre me tranquilizava: « Não faças caso, em sonhos não há firmeza». Pensava então que a minha avó , embora fosse também uma mulher muito sábia, não alcançava as alturas do meu avô, esse que, deitado debaixo da figueira, tendo ao lado o neto José, era capaz de pôr o universo em movimento apenas com duas palavras. Foi só muitos anos depois, quando o meu avô já se tinha ido deste mundo e eu era um homem feito, que vim a compreender que a avó, afinal, também acreditava em sonhos. Outra coisa não poderia significar que, estando ela sentada, uma noite, à porta da sua pobre casa, onde então vivia sozinha, a olhar as estrelas maiores e menores por cima da sua cabeça, tivesse dito estas palavras: « O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer». Não disse medo de morrer, disse pena de morrer, como se a vida de pesado e contínuo trabalho que tinha sido a sua estivesse, naquele momento quase final, a receber a graça de uma suprema e derradeira despedida, a consolação da beleza revelada. Estava sentada à porta de uma casa como não creio que tenha havido alguma outra no mundo porque nela viveu gente capaz de dormir com porcos como se fossem os seus próprios filhos, gente que tinha pena de ir-se da vida só porque o mundo era bonito, gente, e este foi o meu avô Jerónimo, pastor e contador de histórias, que, ao pressentir que a morte o vinha buscar, foi despedir-se das árvores do seu quintal, uma por uma, abraçando-se a elas e chorando porque sabia que não as tornaria a ver.

Muitos anos depois, escrevendo pela primeira vez sobre este meu avô Jerónimo e esta minha avó Josefa ( faltou-me dizer que ela tinha sido, no dizer de quantos a conheceram quando rapariga, de uma formosura invulgar ), tive consciência de que estava a transformar as pessoas comuns que elas haviam sido em personagens literárias e que essa era, provavelmente, a maneira de não os esquecer, desenhando e tornando a desenhar os seus rostos com o lápis sempre cambiante da recordação, colorindo e iluminando a monotonia de um quotidiano baço e sem horizontes, como quem vai recriando, por cima do mapa instável da memória, a irrealidade sobrenatural do país em que decidiu passar a viver. A mesma atitude de espírito que, depois de haver evocado a fascinante e enigmática figura de um certo bisavô berbere, me levaria a descrever mais ou menos nestes termos um velho retrato ( hoje já com quase oitenta anos ) onde os meus pais aparecem: « Estão os dois de pé, belos e jovens, de frente para o fotógrafo, mostrando no rosto uma expressão de solene gravidade, que é talvez temor diante da câmara, no instante em que a objectiva vai fixar, de um e do outro, a imagem que nunca mais tornarão a ter, porque o dia seguinte será implacavelmente outro dia ... Minha mãe apoia o cotovelo direito numa alta coluna e segura na mão esquerda, caída ao longo do corpo, uma flor. Meu pai passa o braço por trás das costas de minha mãe e a sua mão calosa aparece sobre o ombro dela como uma asa. Ambos pisam acanhados um tapete de ramagens. A tela que serve de fundo postiço ao retrato mostra umas difusas e incongruentes arquitecturas neoclássicas.» E terminava: « Um dia tinha de chegar em que contaria essas coisas. Nada disto tem importância, a não ser para mim. Um avô berbere, vindo do Norte de África, um outro avô pastor de porcos,uma avó maravilhosamente bela, uns pais graves e formosos, uma flor num retrato - que outra genealogia pode importar-me? a que melhor árvore me encostaria? » "

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( Extracto do discurso proferido pelo autor, a 7 de Dezembro de 1998, na Academia Sueca, que, em 8 de Outubro , anunciou a decisão de atribuir o Prémio Nobel da Literatura, pela primeira vez, a um escritor de língua portuguesa. Chama-se, como é sabido, José Saramago. O texto completo consta do livro intitulado " Discursos de Estocolmo - 7 e 10 de Dezembro de 1998", uma edição da Editorial Caminho, de distribuição gratuita, homenagem ao escritor no 10º aniversário do evento. )

8 comentários:

Maria disse...

A excelência do convidado da semana!
Obrigada.

Beijo

Maria P. disse...

A excelência do convidado, como refere muito bem a Maria, e o bom gosto de quem convida.


Beijinho**

gaivota disse...

josé saramago, a escolha perfeita para convidado da semana,
uma vida cheia de obras plenas de sabedoria
bem hajas!
beijinhos

FERNANDA-ASTROFLAX disse...

Olá querido Amigo Eduardo, adorei o teu texto... Fiquei com um aperto no coração... Uma vida tão singela e tão rica de conhecimentos...
Quanto ao teu convidado, da semana está quase tudo dito, gosto da sua literatura...
(Eduardo estou a escrever-te de um novo blogue que abri, mas os outros continuam)... Um dia feliz...Beijinhos de carinho e ternura,
Fernandinha

Graça Pires disse...

Este discurso tenho-o guardado para o ler de vez em quando. Sou fã da escrita de Saramago. Uma excelente escolha de um excelente autor. Um abraço.

Carla disse...

Não li esse livro do Saramago...apesar de toda a controvérsia em torno da sua escrita, eu gosto globalmente da sua obra, mais de uns livros do que de outros, mas o meu preferido continua a ser O Memorial do Convento...fabuloso!
beijos

poetaeusou . . . disse...

*
tenho um livro - edição de 1966,
Os Poemas Possíveis de saramago,
,
é giro . . .
ver as diferenças,
,
um abraço, deixo,
,
*

Lúcia disse...

Aquele 1º parágrafo - nunca o esqueci.
Beijinhos, Eduardo