POEMA
As coisas mais simples, ouço-as no intervalo
do vento, quando um simples bater de chuva nos
vidros rompe o silêncio da noite, e o seu ritmo
se sobrepõe ao das palavras. Por vezes, é uma
voz cansada que repete incansavelmente
o que a noite ensina a quem a vive; de outras
vezes, corre, apressada, atropelando sentidos
e frases como se quisesse chegar ao fim, mais
depressa do que a madrugada. São coisas simples
como a areia que se apanha, e escorre por
entre os dedos enquanto os olhos procuram
uma linha nítida no horizonte; ou são as
coisas que subitamente lembramos, quando
o sol emerge num breve rasgão de nuvem.
Estas são as coisas que passam, quando o vento
fica; e são elas que tentamos lembrar,
como se as tivéssemos ouvido, e o ruído da chuva nos
vidros não tivesse apagado a sua voz.
Revelação perdida
O que encontramos num período de decadência é o
sentimento de que nada nos irá sobreviver. Ficamos
imobilizados perante ele; tudo nos impede de criar algo
de novo, e as próprias palavras parecem gastas, servindo
apenas para dizer as coisas que já sabemos. Tentamos
fugir a essa impressão; e sentamo-nos em frente do mar,
ou olhamos o crepúsculo , com o sol a cair para detrás
das grandes falésias varridas pelas ondas do Outono. E
tudo o que vemos é um bilhete postal, como se a própria
natureza não passasse de um lugar comum, ao qual dese-
jamos fugir para que não nos contamine com a sua
banalidade. Então, pego na máquina fotográfica e fixo
esse instante. Mas sei que não irei revelar o rolo, porque
não se trata aqui de uma revelação plena, que me irá
trazer a verdade originária, que só os deuses conheciam;
pelo contrário, sei que deitarei o rolo para o lixo, e
não lamentarei a perda dessas imagens que hão-de ficar
apenas na minha memória, para que um dia as revele de
outra forma. No entanto, penso, deitei o crepúsculo
para o lixo; e ao remexer no saco, para ver se recupero
esse rolo, como o velho que todas as noites passa pela
minha rua e abre os caixotes em busca de comida,
sinto-me como se fosse um descobridor, ignorando
que terras, que litorais, que ilhas longínquas irão
sair de dentro das fotografias. Mas não é isso que
importa, pelo contrário, todas as imagens que me
poderiam aparecer, já as conheço, e nenhuma viagem
me restituirá o que vi no instante em que olhei
pela objectiva e escolhi o enquadramento para o
disparo. O que procuro é o rosto que se cruzou com
o ângulo da imagem e não tive tempo de evitar;
e o sorriso vago que surgiu do ruído da máquina,
quando ela se apercebeu de que iria entrar na foto-
grafia, perturbando o crepúsculo com a realidade
do seu corpo. Pude então pôr em causa o conceito
de decadência; e descobri que a novidade pode surgir
de dentro de um rolo que se deitou fora e no qual
se perdeu para sempre o olhar que procurávamos.
( Nuno Júdice, no livro " As coisas mais simples " )
9 comentários:
E é um excelente convidado... gosto de Nuno Júdice.
Obrigada
Beijo
"As coisas mais simples, ouço-as no intervalo do vento".
Belíssimo poema, como, aliás o livro todo. Nuno Júdice é um excelente poeta.
Obrigada pelas palavras lindas e sensíveis que deixou no poema sobre o Alentejo. Fiquei muito sensibilizada. Um abraço.
Maria:
Olá. É mais do que convidado: é um amigo da casa.
Como tu.
Eduardo
Graça:
O seu poema suava de calor de agosto. E tive pena dos pássaros. Mas é assim o Alentejo: barbaramente belo.
De uma beleza nada piegas.
É assim que a vejo: tosca, rude, sóbria, mas tem flores que bastem para adoçar o mundo.
Beijos.
Eduardo
Bem bonito...
Obrigado por no-lo teres trazido.
Beijos
Lúcia
Agradecer não precisa.
Bj.
Eduardo
*
um nuno
que é júdice,
,
obrigado
pelo post,
,
saudações,
*
Um dos meus Poetas preferidos...que aliás, tenho convidado bastante... :))
Um abraço
Rosa Brava
Contente fiquei com a sua visita.
Um dia destes vou visitá-la também.
Um abraço.
Eduardo
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